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Quinta das Camélias

por António Tavares, em 28.02.17

Quinta das Camélias

A vida no seminário de Vila Nova de Poiares nunca foi muito difícil. Não de lembro de violentações ou castigos. Vivia-se a rotina do dia-a-dia.

Trazia da casa dos meus pais a aversão a leite e queijo. E o pequeno-almoço era sempre café com leite. Bebia com repulsa, mas bebia. O pior era quando as natas do leite vinham coalhadas por cima. Por vezes eram tantas que tinha que soprar para ir bebendo aos golos. A maior parte das vezes não bebia, tantos eram os vómitos. Dentro do pão vinha normalmente marmelada. Isso comia. Quando era queijo comia só o pão.

A Quinta das Camélias prolongava-se para o outro lado da estrada nacional nº 2. Havia um grande pinhal onde foi feito um terrapleno que nos servia de campo de jogos e de ginástica. Formávamos equipas e fazíamos torneios entre nós.

Sentavamo-nos debaixo dos pinheiros a ler ou ouvir transístor. Foi aí que ouvimos o Benfica ser campeão europeu em 1962.

Havia um rapaz mais velho, com ar mais girinho de quem todos gostavam de ser amigos. Normalmente sentavamo-nos todos à volta dele para o ouvir ler ou contar histórias. De afeições mais íntimas de que tanto se tem falado em tempos mais recentes, nunca se me constou nada.

As aulas versavam sobre as disciplinas normais do liceu, sobre religião, sobre bons comportamentos e mais nada. Os padres deram a cada um de nós um livrinho de boas maneiras. Aí se ensinava como colocar os talheres na mesa, como se deixavam postos depois de comer e como se comia a sopa inclinando o prato para a frente e não para o nosso lado. Rezava-se muito. Havia missa diária.

Participava-mos nas tarefas diárias de limpeza. Da apanha dos frutos da horta. Todos os dias um grupo tinha que ir para as cozinhas antes do almoço ajudar as cozinheiras a limpar as batatas. Havia uma máquina grande, tipo máquina de lavar com tambor, onde elas eram colocadas. Ao girar a pele das batatas ia sendo cortada. Ficavam redondinhas. Mas nas zonas curvas e com olhos era preciso tirar a pele que aí ficava.

Havia um padre italiano que tinha a missão de confessor. A quem nos podíamos dirigir para falar. Nunca lá fui. Mas uma vez ele chamou-me ao seu gabinete. Tinha 12 anos. Da conversa que tivemos apenas retive uma pergunta que me fez: sabes onde fica o sexo? Não percebi a pergunta. Ri-me para ele sem lhe dizer nada, sem saber o que responder e apontei para a testa. Lembro-me de ter pensado em siso, juízo. E por isso lhe apontei para a testa. Não sei se ele pensou que estava a gozar com ele. Porque sexo não sabia o que era. Mandou-me embora sem me dizer mais nada.

Mas ficaram na memória os longos passeios que dávamos, a maioria a pé, outros de autocarro.

Íamos com frequência até Penacova ao longo da EN2. Parávamos na aldeia de Louredo para ver as pessoas às portas das casas a fazer, à mão, os palitos de madeira de choupo. Passávamos o dia a tomar banho no rio Mondego, numa zona de grande areal. Foi aí que aprendi a nadar. Ao longo desta estrada havia árvores esquisitas, muito altas, que tinham vagens muito grandes. Nunca tal tinha visto. Descobri muito mais tarde que eram alfarrobas. A minha mania de dar atenção às árvores…

Por outra vez fomos até Lorvão visitar o mosteiro. Este mosteiro é muito antigo. Era local de isolamento de princesas com desgostos de amor ou com castigos reais. Na altura que lá fomos já era local de isolamento de doentes mentais. A igreja é muito rica em obras de arte. Lembro-me de termos subido ao zimbório e dar a volta por cima de toda a igreja.

Um sítio onde íamos com frequência era o cerro de São Miguel. Uma zona atravessada pela EN17 (estrada das Beiras), que na zona se chamava estrada real e se dirigia de Coimbra para a Serra da Estrela. Nessa zona existem nascentes de água que as pessoas canalizaram pelas ruas fora para irrigar as hortas. Havia um senhor que tinha grandes pomares de maçãs e que após apanhar os melhores frutos para vender oferecia os outros aos padres do seminário. Lá íamos nós ao rabusco. O padre levava numa carrinha os cestos para nós enchermos. Avisavam-nos para não as comermos ali.

Certa vez fomos até à serra do Carvalho, sobranceira ao rio Mondego, ver o local onde embateram 8 aviões da força aérea em simultâneo. No dia 1 de junho de 1955 vinham 12 bombardeiros F84 Thunderjet em formação, de São Jacinto (Aveiro) para a Ota, para comemorar o aniversário da Força Aérea que havia sido criada 3 anos antes. Estava nevoeiro e eles voavam à vista e sem apoios técnicos. Os 4 primeiros conseguiram ultrapassar o cume da serra. Os 8 restantes embateram na serra e morreram todos os pilotos. Conseguimos ver os buracos que cada avião fez na serra. Passados 7 anos ainda por lá se viam porcas e parafusos espalhados pelo chão.

Nestes passeios mais longos um dos padres levava uma carrinha que esperava por nós nos sítios, com sandes e água para o almoço. Nos passeios maiores íamos de autocarro alugado. Lembro-me de ir até à serra da Lousã ver a zona do castelo, a capela da Senhora da Piedade e a praia do rio Arouce e de ir até à serra do Buçaco e subir toda a via-sacra até à cruz alta.

Fomos até às ruinas de Conimbriga. Mas paramos um pouco antes, em Condeixa para visitar um fabricante de mós, em granito, para moinhos. Havia vários na zona. Fiquei curioso porque me lembrava (tinha eu 5 anos) do meu pai ter construído um moinho de água no Casalinho (onde hoje está a barragem do vergancinho) e de ele ter ido muito longe buscar as mós na carroça da mula. Já na altura achava estranho as mós serem feitas de pedra diferente da que havia na zona. Em Condeixa os fabricantes de mós iam escavando o granito em redondo de modo a formar a mó e depois escavam por trás para a soltar. Vimos algumas já meio feitas, ainda agarradas à rocha mãe.

Há poucos anos passamos por Vila Nova de Poiares e entramos na Quinta das Camélias. É hoje um centro social e lar de idosos.

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 Ò pra ele a fingir que é o Cristiano Ronaldo ... em 1962

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 Num dos passeios em Vila Nova de Poiares

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 A Quinta das Camélias hoje: lar de idosos

 

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publicado às 18:39

Comprar o céu ainda neste mundo

por António Tavares, em 27.02.17

Comprar o céu ainda neste mundo  

As pessoas em Cardigos (como em qualquer aldeia portuguesa) viviam a vida da igreja intensamente e tinham por missão comprar um lugar no céu, ainda neste mundo.

A família Tavares de Cardigos era uma das famílias mais rica.

Um Tavares era o presidente da Junta. Tinha sempre à porta um dos poucos automóveis que havia na vila, um Citroen.

Outro era o Regedor. Era o que controlava as licenças de uso de isqueiro. Quando aparecia alguém com um isqueiro mandavam-no logo guardar, pois podia andar por perto o senhor regedor.

O sr José Tavares era dono do lagar de azeite e da maior mercearia que vendia desde panos a alfaias agrícolas, sabão, azeite e manteiga ao quilo. Consta-se que guardava o dinheiro (moedas) em arcas de salgar a carne de porco. Tinha várias cheias. E de vez em quando gostava de contar a sua fortuna. Enchia uma caneca de moedas e contava o seu valor. Depois era só passar de uma arca para outra e ir contando as canecas.

A moagem das azeitonas era um dos nossos maiores acontecimentos anuais. Iam-se apanhando as azeitonas para uma tulha de cimento enterrada no chão à entrada do casalinho. No dia aprazado lá ia-mos nós com toda a azeitona metida em sacas de serapilheira, em cima da carroça, para o lagar. Dava imenso gozo ver todas aquelas engrenagens, prensas, fogueira, azeite a escorrer, provar um pedaço de broa molhado no azeite novo. Era mesmo uma festa. Na altura de medir o azeite era 10 litros para nós, 1 para o lagareiro. O dono do lagar ficava com 10 por cento do azeite. Era o que ele depois vendia. Trazíamos o azeite e o bagaço (restos de azeitonas moídas) que servia ir adicionando na ração dos porcos.

Mas então como é que o sr José queria comprar o céu? Simplesmente fazendo em vida um lote de alminhas (já não me lembro de quantas eram) espalhadas por vários cruzamentos de caminhos da freguesia. Combinou-as com o meu pai para ele as ir fazendo à medida que pudesse. Em tijolo, uma cruz em cima, um nicho com azulejos de Nossa Senhora. Cada vez que fazia uma ele ia receber. Ainda me lembro de ele ter construído umas quantas. Uma ainda está ao lado da escola de Cardigos.

Um irmão era dono da serração de madeiras. Tinha camiões. Fui num desses camiões que fiz a minha primeira viagem a Lisboa para me ir apresentar no meu primeiro emprego. Também tinha uma fábrica de velas de cera. E quando havia festas na Vila o meu pai pedia muitas vezes para que um motorista dele nos fosse lavar todos ao Casalinho em cima da camioneta, já noite alta depois do fogo preso.

Em Cardigos havia muita gente a dedicar-se à apicultura e era nas fábricas de velas que essa gente vinha vender a cera.

Havia uma outra irmã desses Tavares de que já não me recordo o nome (talvez Natividade). Sempre a conheci viúva, a viver com a criada (D Alice). Esta senhora dava trabalho ao meu pai. E como sabia que eu andava a estudar no seminário disse ao meu pai que passava a ser minha madrinha e me pagava os estudos. Queria comprar o céu sendo madrinha de um padre.

E aos domingos queria por força que eu fosse almoçar lá a casa. Não gostava nada mas os meus pais insistiam e eu ia. Não gostava por causa do cheiro que a casa tinha. Não me parecia o cheiro normal de uma casa normal. Pelo menos não era o cheiro da nossa casa. Mas também eu nunca entrei verdadeiramente na casa em si. Entrava pelas escadas de serviço e almoçava na cozinha ao pé da criada.

Era latifundiária, mas as terras só por si não geram dinheiro. Um belo dia vendeu tudo, foi com a criada para Fátima, para estar mais perto da porta do céu. Comprou uma casinha pequena mesmo atrás do seminário onde eu estava. Levou lá o meu pai uns dias para fazer obras e por a casa ao seu jeito. A parte de baixo era dela e o sótão ficou para a criada.

Para se entreter e ir ganhando algum dinheiro para o dia-a-dia comprou uma loja de vender santinhos. Já depois de casado, sempre que íamos a Fátima passava por lá para a visitar. Mais tarde passamos a ver só a criada. Na última vez já a criada estava num lar de freiras e a loja era de outras pessoas.

A casa velhinha ainda lá estava, muito abandonada.

 

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publicado às 11:53

As minhas memórias

por António Tavares, em 27.02.17

As minhas memórias

Sempre quis escrever as minhas memórias.

Quem não tem um jornalista para quem ditar as suas recordações para que depois ele as ponha em letra de forma, bem orientadas, tem que fazer como eu. Ir escrevendo à medida que as memórias nos veem à cabeça. Felizmente hoje temos estas máquinas onde escrevemos, permitindo-nos alterar, acrescentar, apagar, etc.

Sempre foi assim que quis fazer.

Mas escrever assim requer tempo, concentração, intimidade, isolamento. Coisas que me têm faltado. Muito eu queria ter mais tempo para isso.

E tomei a decisão de começar a escrever com o nascimento da Maria Clara. Porque não sei se terei tempo para lhe contar todas as minhas recordações.

Escolho os poucos tempos livres, no intervalo do atendimento dos clientes e em casa à noite.

Mas a Fernanda passa a espreitar o que estou a fazer no computador e diz: hoje passas aí o serão?

Às vezes o Bruno diz para a mãe vir mais para a loja. Para quê? Responde ela. O teu pai tem lá pouco que fazer. Está sempre ao computador. Claro que não é verdade. E quando ela chega eu deixo-o logo para ela ir para o facebook.

Mas enfim. Vou escrevendo conforme posso. E para não me esquecer de nada, sempre que me vem à lembrança algo interessante anoto. Vejam bem as notas que já tenho neste momento e  sobre as quais ainda quero falar:

Lisboa – Leiria certificado - 50 + 500 + 500 – Igreja Sta marta – raparigas do colégio freira – passeios – serra da estrela - rancho

Messe – pescadas fritas – Canasta – pequeno almoço – está pago…

Nampula – Secção viaturas – stocks peças  – cinema militar –

Porto Amélia – melancias na praia – coluna Montepuez/mueda – Camiões – mercedes – mandioca – tiros nos morros

Nampula – camiões civis – BMM – tiros de salva – chefe pide – alerta geral na cidade

Nampula – 4 contos/2 contos – ordenado em géneros – pretos tempo dos cajús

Casa de Nampula – papaias – banho com água da chuva – tomates no quintal – cacho de bananas – beber wiski

Nampula – tiros – funerais – Major da pide – alerta em Nampula

Nampula – abata-se – Casas dos generais – conjunto João Paulo – o pior foi o material que se perdeu

Nampula – nameteculia – Casa da Paula .. Hotel Portugal - barragem

Nampula – humidade – algodão – 2 culturas por ano

Partida da Moçambique – 6.500$00 – 3.500$00 cá

Casalinho – Moinho – Chaveira – Sapateiro – fuga – Entupir possos – Cabras – Morecela – Pinheiros – fogo - Bruxa

Cardigos – Igreja – sino partido – Festas – fogo preso – camioneta levar ao casalinho

Cardigos – Sacristão – Graça – bandeja

Apêndice – médico Nampula – Vila franca de Xira – Santa Maria

Escola – Galo – mar na nazaré

Despachante – Julieta – alfândega – 5$00

Escola – lareira – pinhas – régua

Casalinho – cabras – hera – farinheira – enxada para estradas – carro e barco de casca de pinheiro – 72 tangerinas

Poiares – Quinta das Camélias – lar de idosos - Mário - futebol – maçãs – rio mondego – aviões na serra – Manuel Nunes – passeios – Conimbriga – fabrico de mós

Poiares – confessor/sexo – leite com natas – descascar batatas – Fiat 600 multipla

Poiares – Coimbra - bananas

Fátima – Hotel

Ericeira – férias – casa da praia

Fátima – peregrinos – calças do pijama

Fátima – exames Leiria – DKW 2 tempos

Lisboa – Isla – 8 contos – Manel – passou a despachante – telefones para escritório - Solmar

MNF

Nampula – Camiões para as colunas – BMMaterial -

Lago Niassa – barcos da marinha

Louvor

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publicado às 10:43

Nampula

por António Tavares, em 23.02.17

Nampula

Nampula era uma cidade elegante. Largas avenidas duplas. Faixas centrais arborizadas. Muitas flores. Grande dinâmica comercial. Soldados a passear por todas as ruas a todas as horas. Todas as pessoas possuíam carros. A maioria dos carros eram Volkswagen porque eram resistentes e não era preciso meter água e Mercedes porque davam status.

Foi lá que também comecei a ver dois carros estranhos que não conhecia Colt e Galant. Só muito mais tarde, já na metrópole, quando foi introduzida no mercado nacional a marca Mitsubishi é que descobri que aqueles eram modelos daquela marca.

Apercebi-me de designações que só lá faziam sentido: flat (para designar apartamento) e turismo (para designar automóvel de passeio, carro de turismo). Influência inglesa bem vincada na condução pela esquerda, tal como nos países vizinhos, Rodésia e África do Sul.

Nos primeiros dias que passei na cidade apenas tinha que me apresentar de manhã ao dito Major da 3ª repartição do QG para saber se já havia colocação para mim. Depois saía. Entretinha-me a passear pelas ruas. Queria ver tudo. Por vezes aventurava-me mesmo pelas picadas fora da cidade. Às vezes com receio.

Num desses passeios, num domingo de manhã, dei de caras com uma rapariga mulata, bem gira. Agarrou-me no braço, inquiriu sobre a minha situação, disse que podíamos ser amigos. Estava alertado para este tipo de pressões. Dei meia volta e começo a regressar para a cidade. Ainda me seguiu agarrada ao meu braço uns largos metros, até que desistiu.

Logo a seguir vejo à minha frente um pretito com um abacaxi enorme a dirigir-se também para a cidade.

- Vais levar para vender?

- Sim

- Queres cinco escudos por ele?

- Quer … quer …

Até parece que ficou contente ou que achou muito a oferta. Lá comi eu abacaxi (e bem maduro e doce) durante alguns dias.

Nampula está num planalto rodeado de morros por todo o lado. Morros não são mais que afloramentos rochosos saídos da terra plana. Alguns com formas características, outros com aparências de coisas que as pessoas imaginam ver neles. Como o morro da preta que podia ser observado de dentro do quartel onde trabalhava.

Como tinha ficado sem fardas e sem botas, fui obrigado a comprar aos poucos o que me faltava. Um dia vinha a sair do Casão Militar com meia dúzia de peças que comprara e ao transpor a porta para a rua fui agarrado pelo braço por um Major que me obrigou a entrar para o seu jipe. Levou-me para o seu gabinete, sentou-se na secretária e mandou-me por em sentido à sua frente.

- Vocês, rapazes novos não se sabem comportar. Não têm aprumo militar. Não sabe que tem que andar aprumado e bem fardado? Onde está a sua boina?

- Ò meu Major, está dentro deste saco. Estava a acabar de a comprar.

Depois de lhe contar as minhas peripécias, mandou-me embora. Ainda teria que me voltar a cruzar com ele várias vezes até ao fim da minha comissão em Nampula. Ele tinha por hábito percorrer os corredores do Casão Militar e espiar os oficiais que faziam compras. Quando via um sem boina esperava-o à saída. E lá ia ele ouvir o sermão do bom comportamento. Ele garantia a toda a gente que havia de pôr os militares de Nampula na ordem.

Um certo dia, no seu gabinete de trabalho, estava na sua frente um Alferes ouvindo o mesmo sermão. O sr Major fita-o com espanto nos pés. Tinha meias encarnadas.

- Maricas…

Retorquiu exasperado. E apontando-lhe o dedo com recriminação:

- Ponha-se daqui para fora. Nunca mais o quero ver.

Um belo dia aparece-me um Alferes a perguntar se eu já estava colocado. Disse-lhe que não.

- Não queres ficar no meu lugar?

Sem saber que lugar era, disse que sim. Preferia antes ter uma ocupação do que continuar a divagar pelas avenidas de Nampula. Trata-se de um Alferes natural de Lourenço Marques que aguardava há muito tempo resposta a um pedido de transferência, para poder estar mais perto de casa. Mandaram-no aguardar até haver alguém que o substituísse.

No dia seguinte fomos os 2 ao Major da 3ª repartição do QG e ele aceitou a minha colocação no seu lugar.

Passados dois dias lá fui eu assumir as minhas funções para o resto da comissão, o comando na Secção de Viaturas da Companhia de Comando e Serviços do Quartel General da Região Militar de Moçambique (SV/CCS/QG/RMM).

Que nome pomposo…

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Faixa central de uma avenida de Nampula

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Morro na estrada de Nampula para Nacala. Fotografia tirada da janela do jeep ao meu serviço.

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Morro da preta visto da parada do quartel onde estava colocado

 

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publicado às 11:18

Enfim Lisboa

por António Tavares, em 17.02.17

Enfim Lisboa

Fiz a percurso de Cardigos a Lisboa em cima de uma camioneta da serração de madeiras que vinha trazer tábuas para as obras do metropolitano, em agosto de 1968. A camioneta foi levar a madeira à zona do Intendente. Era aí que havia obras na altura, a céu aberto. Não conhecia Lisboa. Disseram-me apenas para estar às 17 horas nas traseiras do cinema Alvalade.

Vinha para me apresentar no escritório de um despachante aduaneiro na esperança de conseguir o meu primeiro emprego.

A minha mãe tinha um primo, o Manuel Valente, conhecido como o Manuel de Moura. A mãe dele era da Roda, o pai era de Moura e foi em Moura que ele cresceu. Ligado à igreja católica, frequentador dos cursos de cristandade para leigos, foi lá que travou conhecimento com o sr visconde.

Figura da sociedade, despachante oficial na alfândega de Lisboa, ligado à opus dei, com escritório no Campo das Cebolas em Lisboa. Acabou por levar o primo Manuel de Moura para seu braço direito.

A pedido da minha mãe, porque tinha vindo do seminário, o primo Manuel de Moura acedeu a que fosse lá ao escritório naquele dia de agosto, para ser apresentado ao patrão.

Lá fui. Vestido de fato e gravata. Aprumadinho. Um pouco cansado e sujo da viagem em cima da camioneta. Fui recebido pela secretária, a dona Julieta. Gostou de mim. Da receção do sr engº não me lembro. Sempre o achei demasiado distante. Da dona Julieta sim. Gostou de mim. Fiz por isso. Bem comportado, educado, ex-seminarista. Tudo o que essa gente aprovava.

Costumo dizer que não desejo a morte a ninguém e que não seria capaz de fazer mal a alguém. Mas há duas pessoas no mundo a quem, se pudesse, seria capaz de fazer mal. Uma é essa tal Julieta. Não sei é morta ou viva, mas que seria capaz de lhe dar uns valentes tabefes, é verdade. Um dia conto-vos.

Mas bom, gostaram de mim. Mandaram-me apresentar no dia 1 de Outubro seguinte para iniciar funções de Praticante de Despachante. Porque ainda não tinha 18 anos. Só em Janeiro seguinte poderia tirar a cédula de Ajudante, já com 18 anos.

Os despachantes eram profissões liberais, tipo advogados. Obedeciam a normas muito rígidas. Eram admitidos por concursos feitos pela Alfândega. Tinham por missão servir de intermediários entre os importadores/exportadores e a alfândega. Inspecionavam as mercadorias, faziam as contas aos direitos aduaneiros, recolhiam os impostos e entregavam-nos ao estado. Movimentavam milhões. Podiam fazer-se representar por ajudantes de despachantes (que tinham que ter 18 anos e o 2º ciclo – 5º ano) ou por praticantes de despachante (menos de 18 anos e apenas o 1º ciclo – 2º ano).

Antes das 17 horas lá estava eu Alvalade, no local combinado. Regressei a Cardigos na mesma camioneta. Mas desta vez na cabine. Uma das pessoas que tinha vindo na cabine ficou em Lisboa. De regresso atravessamos a lezíria da Chamusca por dentro das hortas, junto ao rio Tejo. É o percurso que se fazia para comprar melões e melancias. O motorista levava instruções para no regresso levar um carregamento.

Em Outubro lá me apresentei. Ordenado de 1.500$00. Um dinheirão. Nunca tinha visto tanto dinheiro na minha vida. Era das profissões mais bem pagas. Fui hospedar-me numa pensão na rua de Sta Marta, onde também residia um outro primo da minha mãe, que por acaso também abandonara o seminário.

Sou da opinião que se deve mudar várias vezes de emprego para não ganhar vícios, para recolher novas experiências. Foi o que fiz algumas vezes. Já por minha conta e risco. Este foi o único emprego que me arranjaram através de cunha.

Mas … enfim Lisboa

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publicado às 10:12

A guerra não era para mim

por António Tavares, em 16.02.17

A guerra não é para mim

Desde o dia do meu internamento no hospital militar de Nampula fui levado de 2 em 2 dias ao médico psiquiatra que tentava perceber as minhas reações. Falava-me na necessidade de eu recuperar, de voltar para junto dos meus soldados, onde fazia falta. Sempre cabisbaixo, barba grande, desleixado. Sem nunca lhe dirigir qualquer palavra, mandava-me voltar para o quarto. Que voltasse daí a dois dias.

Deitado na cama pensava no modo de conseguir prolongar o mais possível aquela situação. Nunca recebi uma única visita dos familiares que faziam vida na zona de Nampula e Nacala, mesmo sabendo que tinham sido avisados pela minha mãe. Tinha que ser eu sozinho.

Todos os dias vinha o furriel enfermeiro e deixava em cima da mesa de cabeceira os medicamentos.

- Sr alferes, estes são para tomar com o café, estes são para o almoço e estes são para o jantar.

Mal se ia embora despejava os medicamentos na sanita e puxava o autoclismo. Nunca tomei nenhum.

Como não estava acamado tinha que me deslocar à sala das refeições para comer. Fazia esse percurso arrastando-me lentamente apoiado nas paredes. Ao pequeno almoço apenas bebia uns golos de chá sem açucar. Voltava para o quarto. Ao almoço e ao jantar comia 2 colheres de sopa. Mais nada. Isto durou cerca de 3 meses.

A dada altura vieram dizer-me que estava outro alferes no quarto ao lado que queria falar comigo. Fui visitá-lo. Era o outro alferes da mesma companhia, que em Mueda me avisara que iria ter comigo ao hospital. Tinha sido operado aos dedos de um dos pés. Tinha apanhado um tiro que lhe decepou um deles.

Era já o terceiro alferes (dos 4 que a companhia tinha) a dar baixa ao hospital. O primeiro tinha ficado em Lisboa. Deu baixa ao hospital antes de embarcar.

Alegou que a G3 se disparou acidentalmente durante o percurso de Mueda para Mocímboa do Rovuma. Que ia sentado, juntamente com os soldados, em cima dos sacos de reabastecimento transportados na Berliet. E que num dos muitos solavancos do caminho puxou o gatilho sem querer. Porque lavava a arma engatilhada e pronta a disparar.

O certo é que foi operado. E com o pé engessado encontrei-o muitas vezes em festas, a tomar banho na praia, etc., sem qualquer proteção. Foi evacuado para Lisboa. Encontrei-o, passados anos, ainda fardado, no quartel de adidos da Graça. A ferida gangrenou, foi-lhe amputada a perna.

Mas … falando de mim. Ao fim de cerca de 3 ou 4 meses, em mais uma visita ao psiquiatra, diz-me ele:

- A guerra não é para si. Já percebi.

Rabiscou qualquer coisa, que nunca li, num papel e deu-mo.

- Vá-se embora. Vai para os Serviços Auxiliares.

Peguei no papel sem esboçar qualquer reação. Percorri o corredor até à receção e disse (finalmente) para o Sargento:

- Dê-me aí as minhas coisas que me quero ir embora.

- Há! Agora já fala. Tome lá e vá-se apresentar na 3ª repartição do Quartel General, ao Major ….

Não lhe dei resposta. Deu-me um saco com meia dúzia de pertences e fui-me embora do hospital. Apresentei-me na dita repartição, ao dito major. Foi-me indicado um quarto num dos muitos apartamentos espalhados pela cidade, destinados a alojar os oficiais. Arrumei as minhas poucas coisas e fui jantar. Já não comia há 3 ou 4 meses.

Dirigi-me à mais conhecida cervejaria de Nampula. Numa das principais avenidas, no rés-do-chão de um conhecido hotel, em frente à Casa Dias (a casa da moda mais in de Nampula).

Pedi 12 camarões tigre grelhados. Depois um bife grelhado. Bebi algumas bazucas. Estava regalado. E vingado.

Paguei e saí. Não devo ter andado mais do que um ou dois quarteirões. Comecei a ficar mal disposto. Vomitei tudo.

Mas estava feliz. Parecia premonição do Fado do Checa do Cancioneiro do Niassa:

...

Mas tem cuidado

“Checa” danado

Sê pouco anjinho

Manda-os lixar

Faz a tua guerra sozinho

Casa onde morava.jpg

A casa onde passei o resto da minha guerra

Casa Dias.jpg

A casa da moda: Casa Dias

Hotel em Nampula.jpg

 Mesmo atrás de mim o hotel em cujo restaurante jantei após sair do hospital

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publicado às 12:10

A escola de Cardigos

por António Tavares, em 10.02.17

A escola de Cardigos

A escola que todos nós frequentámos ficava na Vila de Cardigos. Tinha apenas 2 salas de aula. Uma para rapazes e outra para raparigas. As raparigas sempre tiveram um professor. Eu sempre tive uma professora, e sempre a mesma, de primeira à quarta classe. Nunca percebi porque é que era assim. Achava estranho, pronto.

Na sala estávamos alinhados em fila consoante a classe. Uma para cada classe. A professora punha os da primeira a fazer desenhos, os da segunda a faze uma cópia, os da terceira a ler algum texto enquanto os da quarta classe faziam um ditado. Em cada fila vinham para a frente os mal comportados. se insistissem a portar-se mal iam para o fundo da sala de pé contra a parede ou de joelhos no chão. Os bons ficavam no fim de cada fila.

Não havia aquecimento. Já eu andava na quarta classe quando foi encomendado ao meu pai a construção de uma lareira com chaminé em cada sala de aulas. O meu pai abriu um buraco no soalho com alçapão para guardar a lenha lá debaixo. Era nossa incumbência, sempre que regressávamos do recreio trazer paus e pinhas apanhados nos pinhais em frente da escola. Porque esses pinhais também eram os nossos recreios. E eu como mais arisco de todos é que subia aos pinheiros para derrubar as pinhas cá para baixo.

Cada sala de aula tinha uma régua. É verdade. Quando alguém se portava mal apanha umas severas reguadas. Nós bem puxávamos a mão para ver se a professora se aleijava. Às vezes conseguia-mos. Por vezes as réguas de desapareciam. Lá voltava a professora no domingo a dizer ao meu pai: ò ti Zé Maria, faça-me lá mais uma régua que a outra já desapareceu. Até que um dia a professora lembrou-se de descer lá abaixo para ver se havia lenha e deparou-se com meia dúzia de réguas escondidas debaixo do soalho. Assim ficou com uma reserva para uns tempos.

A escola tinha um átrio de entrada comum. Nesse átrio existiam cabides de madeira na parede, de cada um dos lados. Era onde pendurávamos as sacas de serapilheira nos dias de chuva. Desse átrio foi desenhado no recreio em frente um risco que, partindo do átrio, se dirigia até aos pinhais em frente e seguia por eles abaixo. Por esse risco corriam depois as águas da chuva. Foram-no alargando até ser um autêntico regato que era proibido ultrapassar. Rapazes de um lado, raparigas no outro. Não havia misturas de brincadeiras. Nem de casas de banho que não eram nem menos nem mais que as moitas que ficavam pelos pinhais abaixo. E o papel higiénico eram as pedras. Ou algum pedaço de jornal que aparecesse perdido.

Não havia água canalizada. A fonte no largo de Cardigos era abastecida por uma nascente numa mina no alto do vergancinho, para lá do casalinho. A água vinha num cano de ferro até junto da escola. Porque a escola ficava no ponto mais alto, foi construído um depósito em cimento mesmo ao lado da escola. Daí a água seguia por gravidade para o chafariz da praça. Nesse depósito foi instalada uma torneira onde os miúdos iam beber. Para as raparigas não havia problema. O depósito ficava no lado delas. Agora os rapazes tinham que esperar em grupo à porta da escola para irem acompanhados com a professora para beber água. Fazia um copo com os dedos e bebia-se diretamente da bica.

Brincadeiras não havia. As raparigas faziam rodas ou coisas parecidas. Os rapazes não queriam trazer brincadeiras ou porque não os deixavam ou porque se as trouxessem todos queriam as mesmas brincadeiras e lá vinham as guerras. De vez em quando lá aparecia um arco ou uma bola. O jogo da bola era o mais frequente. Havia sempre 2 que, por consenso eram os melhores jogadores. Um era do Benfica e outro de Sporting. Depois sorteava-se quem era o primeiro a escolher outro jogador. E a escolha ia continuando alternadamente. Normalmente todos tinham um nome copiado dos relatos de futebol. Eu era o Perídes. Estava na moda no Sporting. Foi aí que comecei a ser sportinguista.

A nossa professora namorava um rapaz que estava no Força Aérea em Tancos. Quando se começava a ouvir o barulho do motor de um avião todos nós tínhamos ordem de saída para o recreio. E lá vinha a avioneta a passar ao lado da torre da igreja. Em voo rasante sobra a escola eram largadas as cartas de namoro. Para nós era uma alegria correr pelos pinhais à procura das cartas. Dava meia volta e lá voltava direito a Tancos. Como a igreja de Cardigos ficava numa zona também alta e a torre era muito alta, estávamos sempre à espera de ver a avioneta a bater na torre da igreja.

A avioneta sumia-se mesmo por trás da torre da igreja. Mas claro que era só ilusão de ótica.

Cardigos saida da missa.jpg

 Saida da missa da igreja de Cardigos. Ao fundo a nova igreja em construção.

Cardigos visto do Casalinho.jpg

A Vila deCardigos vista do Casalinha.

A seta vermelha assinala a torre da igreja antiga (hoje centro de dia da miserecórdia). A seta preta assinala a torre da igreja nova

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publicado às 12:00

A caminho da escola

por António Tavares, em 10.02.17

A caminho da escola

Ainda fui para a escola de Cardigos juntamente com os meus irmãos mais velhos. Com o Mário, que era mais novo, nunca fui para a escola, porque ele foi enviado para casa duns primos da minha mãe em Canha (Setúbal), durante os 4 anos em que durou a escola primária. Assim as memórias mais vivas que tenho são das minhas idas e vindas, sozinho. Os livros e cadernos num saco de pano. Uma saca de serapilheira para por na cabeça nos dias de chuva. Dobrava-se ao meio, metia-se um dos cantos dentro do outro e protegia mesmo da chuva. No mesmo saco dos livros e cadernos levava a bucha para o almoço.

Muitas vezes a minha mãe não sabia o que enviar. Ò mãe, mande só pão e cebola. Almocei muitas vezes rodelas de cebola dentro do pão.

O caminho da escola era o tempo da minha meditação. O que faço eu aqui? Para onde vou?

Gostava de sair de casa cedo para ter tempo de arranjar qualquer brincadeira, qualquer distração. Até as árvores do caminho eram minhas colegas de brincadeira. Sobretudo se fossem árvores exóticas que me despertassem a atenção.

A um pinheiro bravo novo e esguio consegui dar um nó no tronco. Dobrei-o com cuidado, meti a ponta dentro da dobra, puxei para cima. Sempre que ia de férias ao Casalinho ia vê-lo crescer. E lá cresceu com um nó no tronco.

Logo à saída do casalinho o atalho que seguia pela fonte passava sobre um regato onde a minha mãe nos mandava apanhar poejos e hortelã do rio, quando era o tempo deles. Mais adiante havia 2 azinheiras. No tempo das bolotas gostava de subir pelos matos até elas. Sem ninguém me dizer nada apercebi-me que uma delas dava bolotas razoavelmente doces. Metia-as no bolso e lá ia roendo para a escola.

Numa quinta mais adiante e no meio duma vinha, existiam 2 enormes castanheiros. O meu pai estava sempre a ralhar que não queria que fossemos para a escola por ali. Já sabia que no tempo das castanhas nós pulávamos o muro para ir apanhar castanhas. E o dono já sabia que se aparecesse algo mexido tínhamos que ser nós. Mesmo assim eu insistia. Pulava o muro a correr, enchia os bolsos e fugia.

Mas como não as conseguia comer todas até à escola e não as queria levar para casa, descubri o modo de fazer um celeiro. Debaixo de umas moitas abri um buraco redondo no chão. Enchi de castanhas e tapei com terra. Assim, cada vez que ia para a escola, podia tirar uma ou duas. E descobri depois que com o passar dos dias ficavam melhores, mais moles. A humidade da terra fazia com que elas começassem a grelar e ficavam mais saborosas. Até que um dia cheguei e tinha o celeiro vazio. Algum rato do campo ou um ouriço-cacheiro o cheirou e reabasteceu-se.

Já perto da escola havia outra árvore que me despertava a curiosidade: uma nogueira. Tinha por hábito colher folhas dela para meter no meio das folhas dos livros. Fazia o mesmo com pétalas da flor das estevas. Tornavam os livros mais cheirosos.

Com isto tudo chegava muitas vezes atrasado.

Um dia lembrei-me de limpar de ervas uns palmos de terreno, debaixo de umas silvas. O sol batia em cheio naqueles 2 ou 3 palmos de terra. Espetei um pau na vertical meio. Reparei na sombra que fazia no chão. Com outro pau risquei a terra no local da sombra e pensei: quero ver se amanhã a sombra está no mesmo sítio.

Sem me aperceber tinha feito um relógio de sol. Dali para escola já eram só uns 100 metros. Não podia perder tempo. Se chegasse a horas e se no dia seguinte a sombra ainda estivesse antes do risco, sabia que podia demorar um pouco mais a brincar. O pior foi descobrir que o relógio se atrasava. Quando me descuidei voltei a chegar atrasado.

Tinha menos de 10 anos…

Casalinho visto de Cardigos.jpg

 O Casalinho visto de Cardigos

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publicado às 11:55

Aerograma para meus filhos e neta

por António Tavares, em 10.02.17

Aerograma para meus filhos e neta

Hoje toda a gente tira fotografias. Toda a gente tem telemóveis com máquina fotográfica, internet, facebook, etc. As fotos deixaram de ter a aura de mistério que tinham a 50 ou 60 anos. Em todo o lado se vêm fotografias. Já cansa. Muitas vezes nem se lhes dá valor.

Mas na minha meninice era uma raridade. Sempre fui amigo de guardar recordações dos tempos antigos que vivi. O padre Serafim quando vinha ao Casalinho no seu Mini achava piada a tanta criança pequena que deambulava à volta da minha mãe, que estava sempre a tirar-nos fotografias.

Sempre que ia à vila comprar tabaco para o cachimbo, enchia o carro com quantos de nós lá coubessem. Foi a primeira vez que andei de carro. No Mini do sr padre Serafim. Ele saía de Cardigos, punha a mão na buzina e só parava no Casalinho. Só dizia: não mijem no carro. Quando ele ia de noite, aqueles de nós que não cabia-mos no carro ficavamos à entrada da aldeia a ver quando a luz dos faróis do Mini chegavam ao Casalinho. O Casalinho dista 3 quilómetros de Cardigos. As duas povoações estão situadas em outeiros contíguos. Como não havia iluminação pública, a noite, se não houvesse luar, era muito escura. Logo que o Mini saía de Cardigos a luz dos máximos batia na rua do Casalinho. Lá vêm eles….

No seminário os padres também achavam piada a tirar-nos fotos, quer fosse em jogos quer em passeios. Eu gostava de ficar com a maior parte delas.

Assim que arranjei emprego em Lisboa comprei uma máquina e sempre que podia registei em fotos imagens das  minhas deambulações.

Logo que cheguei a Moçambique comprei uma máquina fotográfica com uma característica interessante: de 1 foto fazia 2. Ou seja, como a matriz do rolo era no formato horizontal, ela compunha 2 na vertical na mesma matriz. Vantagens: de 1 rolo de 12 fotografias eu tirava 24. Mas a maior vantagem era nos diapositivos.

A revelação de fotografias é feita em qualquer fotógrafo e paga à unidade. Mas diapositivos nem todos fazem. Em Moçambique tínhamos que enviar os rolos para a África do Sul. Eu comprava um rolo de 12 diapositivos, eles revelavam e mandavam de volta 24. Claro que eles devolviam junto com uma ordem para pagar mais alguma coisa por causa do custo acrescido de revelarem 24 em vez de 12 diapositivos. Nunca mandei dinheiro nenhum de volta. Até que um dia o último rolo enviado não veio devolvido.

Foi com essa máquina que fotografei o meu namoro com a vossa mãe e avó. Que fotografei os passeios que demos antes e depois de casados. Até que um dia na praia do Sul na Ericeira, em cima de uma rocha, fui recuando, recuando para ter melhor ângulo a fotografar o Bruno na areia e caí na água juntamente com a máquina. Foi a correr à vila ao fotógrafo para a abrir e limpar mas nunca mais funcionou.

Apanhei e guardei todas as fotos antigas que encontrei em casa de meus pais com medo que se perdessem.

Tenho assim algumas centenas (talvez milhares) de fotos e diapositivos. Estes, pedi ao Bruno que os levasse à FNAC para serem passados para suporte digital.

As fotos estão arquivadas em pastas.

Por enquanto ainda consigo olhar para elas e localizá-las no tempo e no espaço. Qualquer dia a minha memória esfuma-se e vocês, meus filhos e neta, ficam com um arquivo de memórias sem conteúdo.

Muito gostaria que o guardassem e lhes dessem o destino que entenderem mas que desse para conservar as minhas memórias, que agora vos vou escrevendo.

Fotos do Padre Serafim.jpg

 Fotos do padre serafim: 1955 e 1957. A da esquerda no forno do pão da Ti Jaoaquina. Só conseguimos calar o Mário para ficar na fotografia dando-lhe um canivete (fechado) para a mão. A da direita nas escadas da nossa casa.

Fotos dos padres.jpg

 As fotos que os padres tiravam durante os passeios. Na lagoa de Tocha 1963 e no castelo de Ourém 1964

Fotos primeira máquina.jpg

 As fotos que tirava com a minha primeira máquina. A mãe em Cardigos. O pai cuidando das sementeiras no Cabril. Estes terrenos estão hoje coberto de água pela barragem.

Fotos de África.jpg

 Algumas das fotos de Moçambique

Mergulho na piscina de Nampula. Subida às papaias do quintal da casa onde morava para colher os frutos

Diapositivos de África.jpg

  Diapositivos de Moçambique. Passeio à Praia das Conchas. Morro de térmitas.

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publicado às 11:00

De Mueda ao hospital...

por António Tavares, em 06.02.17

De Mueda ao hospital

Mueda era uma vila no alto dum planalto. Composta essencialmente por uma longa avenida que partia da pista de aterragem, separava de um lado as tabancas dos nativos e do outro as estruturas militares e se prolongava pelo mato fora através da picada para Mocímboa do Rovuma.

No final da avenida ficavam, um de cada lado, os 2 únicos estabelecimentos comerciais: o Santos e o China. Ponto de paragem obrigatória para qualquer militar que por aqui passasse. Serviam bifanas e pregos. Vendiam um pouco de tudo que encomendavam em Nampula e lhes era enviado através das longas colunas militares que com alguma regularidade iam até Mueda para reabastecimento.

Também esses 2 estabelecimentos ficarem imortalizados nos versos do Cancioneiro do Niassa:

Mueda terra de guerra

Vou cantar-te este meu fado

Que compus ainda há pouco…

Mueda que és uma mina

Para o Santos e p’ró China

E para os tipos experientes

E para os que têm por sina

Venderem Água das Pedras

Mais cara que a gasolina…

Chegamos a Mueda num sábado à noite. Depois de tentar comer qualquer coisa no bar e não conseguir, depois de chegar ao quarto e de ver que me tinham roubado tudo, consegui dormir um pouco. Acordei no domingo de manhã. Estava sol. Levantei-me azamboado e com a mesma roupa que trazia de véspera e que nem tinha despido, fui passear por aquela longa avenida.

A dada altura aparece-me um senhor negro com uma menina pela mão. Não tinha mais de 12 ou 13 anos. “O senhô qué fazê máquina?” disse-me. Não percebi o que queria. Segui o meu caminho cada vez mais tonto. Quando mais tarde relatei este facto a alguém, informaram-me que era usual os nativos virem oferecer aos militares as filhas para sexo a troco de dinheiro.

Não devo ter andado muitos mais metros. De tão faminto, fraco e sem forças caí redondo no chão. Dei por mim deitado numa maca na enfermaria. De um lado o soro a entrar na veia. Do outro uma senhora do Movimento Nacional Feminino ia dizendo:  sr Alferes, tem que reagir… os seus soldados estão à espera para seguir com eles… vão partir daqui a pouco… você faz falta junto deles.

Não sei quanto tempo estive assim sem conseguir esboçar qualquer reação, os olhos fitos no teto como que a tentar var mais longe. Não sei se foram horas se foram dias. Ouço tiros e rebentamentos. Não consigo reagir. Volto a ouvir a mesma senhora: não tenha medo. São os nossos. Estão a bombardear o vale para o avião partir. Alguém diz atrás de mim: é melhor aproveitar este avião e mandá-lo para o hospital. Enquanto me preparavam para pôr na maca outro Alferes da mesma companhia que a minha dizia-me baixinho: tu vais agora mas que eu vou lá ter contigo dentro de pouco tempo.

A missão de bombardear o vale de Mueda com murteiros, antes de partir qualquer avião, era rotina. O inimigo já sabia as horas de partida e chegada dos voos dos Nord Atlas. Bastava sentarem-se no fundo do vale com a bazuca ou as espingardas apontadas para o ar. Para evitar isso todo o vale tinha que ser limpo primeiro. Mas como eles não desistiam foi necessário alterar a rotina e fazer com que os aviões partissem ou chegassem em horas aleatórias, de preferência de noite. Os North Atlas eram aviões de reabastecimento e de transporte de pessoal que operavam com regularidade entres as principais bases militares do norte de Moçambique.

Bem, mas lá fui eu de maca amarrada dentro do North Atlas a caminho do hospital militar de Nampula. Só dei por mim a ter alguma reação quando, na aproximação à pista de Nampula o avião descreveu uma curva e eu, mesmo deitado, consegui ver pelas janelas as imagens da cidade. E pensei para mim: isto aqui é muito bonito. Largas avenidas, tudo moradias, algumas com piscina, muita vegetação e flores… Comecei a magicar na minha mente alguma forma de conseguir não voltar para a guerra.

O hospital militar de Nampula era muito recente. A ala dos oficiais tinha quartos individuais, casa de banho privativa, um recanto relvado ajardinado com uma latada de maracujás. Parecia um hotel. Comecei a ser observado pelo médico psiquiatra Dr Coimbra.

Pedi um aerograma para escrever à minha mãe. Em Nampula e em Nacala viviam familiares, primos e tios quer do meu pai quer da minha mãe, alguns mesmo do Casalinho. Donos de machambas enormes, fornecedores do exército em frutas, legumes e hortaliças. Donos de fábricas de cajú e de óleos alimentares. Donos de padarias e das salinas.

Escrevi à minha mãe. Contei o sucedido. Pedi que falasse com alguns dos familiares que por lá viviam, para tentar algum apoio e alguma pressão junto do médico.

Nunca recebi qualquer visita de nenhum. Acabei por encontrar mais apoio em pessoas que não me eram nada. Gente boa do norte de Portugal. Tive que me safar sozinho.

North Atlas sobre Nampula.jpg

 North Atlas sobre Nampula

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publicado às 12:33

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