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72 tangerinas

por António Tavares, em 07.03.17

72 tangerinas

Nas viagens de Cardigos para Vila Nova de Poiares e vice-versa parava sempre algumas horas em Coimbra para fazer o transbordo para outra carreira. Ia-mos em grupo e a partir de Coimbra cada um seguia o seu destino.

Junto à estação de Coimbra B havia uma senhora que vendia bananas dentro dum cesto. Foi lá que comi as minhas primeiras bananas. Comprava sempre só uma. E tenho ainda na lembrança o facto de por vezes gostar muito delas e outras quase que me davam vómitos. Percebi muito mais tarde que as que não gostava eram as que estavam muito maduras. Mas nunca tive coragem (por vergonha) de dizer à senhora que não as queria muito maduras. Ainda hoje só gosto de bananas verdes.

Quando vinha a Cardigos via Sertã, alguém tinha que me ir buscar com a carroça, ao cruzamento junto a Proença-a-Nova, porque eram muitos quilómetros até ao Casalinho. Quando vinha por Cardigos a carreira deixa-me mesmo na vila. Aí eu fazia o caminho a pé até ao Casalinho.

Quando era nas férias de Natal, pelo caminho passava junto aos terrenos que, pertencentes à Dona Natividade, eram cultivados pelo meu pai. E nessa altura havia muitas laranjas e tangerinas. Lembro-me de, um belo dia, me sentar em cima de uma tangerineira e comer tangerinas sem parar. E fui-as contando. Comi 72. E no final ainda enchi os bolsos para comer até casa.

Essa quinta tinha sido em tempos, para além de zona agrícola, uma zona de veraneio e diversão. Tinha ainda alguns vestígios desses tempos áureos, que me encantavam, por nunca ter visto nada assim: um pequeno chalé num ponto alto, no meio da vinha, com churrasco e tudo, as videiras à volta do chalé eram as mais doces (moscatel, penso eu agora), havia uma nora muito grande num poço muito fundo. A nora era puxada pela mula. Deitava água para um tanque muito grande e desse tanque a água irradiava por toda a horta.

Essa quinta foi dada ao meu pai para semear e usufruir podendo ficar com tudo. A dona da quinta apenas vinha buscar tudo o que precisasse para o seu consumo.

Havia algumas árvores interessantes, que não existiam nos nossos terrenos. Uma pereira enorme diferente de todas as que conhecia. Penso hoje que pode ter sido uma pereira de pera rocha. Havia ginjeiras cuja utilidade desconhecia, porque não se podiam comer. Havia muitas romãs à volta do poço da nora. Como eram grandes davam sombra à mula enquanto ela girava à volta da nora. Havia uma nespereira enorme. Havia cerejeiras, algumas delas de cerejas muito grandes.

O meu pai comprometeu-se a limpar a vinha das eras daninhas. Especialmente dos fetos porque crescem muito e abafam as videiras, para além de secar os terrenos, porque desenvolvem raízes subterrâneas enormes. E para erradicar os fetos era necessário arrancar essas raízes todas. Calhou-me a mim esta tarefa. Tinha 10 anos. Vinha da escola a meio da tarde, dirigia-me à quinta, pegava na enxada e cavava os fetos até o sol se pôr. Depressa o meu pai percebeu que era uma luta inglória.

Pais na carroça.jpg

 O Ti Zé Maria e a Dona Delfina (meus pais). Assim vestidos só podiam ir para a missa.

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publicado às 12:05

Comprar o céu ainda neste mundo

por António Tavares, em 27.02.17

Comprar o céu ainda neste mundo  

As pessoas em Cardigos (como em qualquer aldeia portuguesa) viviam a vida da igreja intensamente e tinham por missão comprar um lugar no céu, ainda neste mundo.

A família Tavares de Cardigos era uma das famílias mais rica.

Um Tavares era o presidente da Junta. Tinha sempre à porta um dos poucos automóveis que havia na vila, um Citroen.

Outro era o Regedor. Era o que controlava as licenças de uso de isqueiro. Quando aparecia alguém com um isqueiro mandavam-no logo guardar, pois podia andar por perto o senhor regedor.

O sr José Tavares era dono do lagar de azeite e da maior mercearia que vendia desde panos a alfaias agrícolas, sabão, azeite e manteiga ao quilo. Consta-se que guardava o dinheiro (moedas) em arcas de salgar a carne de porco. Tinha várias cheias. E de vez em quando gostava de contar a sua fortuna. Enchia uma caneca de moedas e contava o seu valor. Depois era só passar de uma arca para outra e ir contando as canecas.

A moagem das azeitonas era um dos nossos maiores acontecimentos anuais. Iam-se apanhando as azeitonas para uma tulha de cimento enterrada no chão à entrada do casalinho. No dia aprazado lá ia-mos nós com toda a azeitona metida em sacas de serapilheira, em cima da carroça, para o lagar. Dava imenso gozo ver todas aquelas engrenagens, prensas, fogueira, azeite a escorrer, provar um pedaço de broa molhado no azeite novo. Era mesmo uma festa. Na altura de medir o azeite era 10 litros para nós, 1 para o lagareiro. O dono do lagar ficava com 10 por cento do azeite. Era o que ele depois vendia. Trazíamos o azeite e o bagaço (restos de azeitonas moídas) que servia ir adicionando na ração dos porcos.

Mas então como é que o sr José queria comprar o céu? Simplesmente fazendo em vida um lote de alminhas (já não me lembro de quantas eram) espalhadas por vários cruzamentos de caminhos da freguesia. Combinou-as com o meu pai para ele as ir fazendo à medida que pudesse. Em tijolo, uma cruz em cima, um nicho com azulejos de Nossa Senhora. Cada vez que fazia uma ele ia receber. Ainda me lembro de ele ter construído umas quantas. Uma ainda está ao lado da escola de Cardigos.

Um irmão era dono da serração de madeiras. Tinha camiões. Fui num desses camiões que fiz a minha primeira viagem a Lisboa para me ir apresentar no meu primeiro emprego. Também tinha uma fábrica de velas de cera. E quando havia festas na Vila o meu pai pedia muitas vezes para que um motorista dele nos fosse lavar todos ao Casalinho em cima da camioneta, já noite alta depois do fogo preso.

Em Cardigos havia muita gente a dedicar-se à apicultura e era nas fábricas de velas que essa gente vinha vender a cera.

Havia uma outra irmã desses Tavares de que já não me recordo o nome (talvez Natividade). Sempre a conheci viúva, a viver com a criada (D Alice). Esta senhora dava trabalho ao meu pai. E como sabia que eu andava a estudar no seminário disse ao meu pai que passava a ser minha madrinha e me pagava os estudos. Queria comprar o céu sendo madrinha de um padre.

E aos domingos queria por força que eu fosse almoçar lá a casa. Não gostava nada mas os meus pais insistiam e eu ia. Não gostava por causa do cheiro que a casa tinha. Não me parecia o cheiro normal de uma casa normal. Pelo menos não era o cheiro da nossa casa. Mas também eu nunca entrei verdadeiramente na casa em si. Entrava pelas escadas de serviço e almoçava na cozinha ao pé da criada.

Era latifundiária, mas as terras só por si não geram dinheiro. Um belo dia vendeu tudo, foi com a criada para Fátima, para estar mais perto da porta do céu. Comprou uma casinha pequena mesmo atrás do seminário onde eu estava. Levou lá o meu pai uns dias para fazer obras e por a casa ao seu jeito. A parte de baixo era dela e o sótão ficou para a criada.

Para se entreter e ir ganhando algum dinheiro para o dia-a-dia comprou uma loja de vender santinhos. Já depois de casado, sempre que íamos a Fátima passava por lá para a visitar. Mais tarde passamos a ver só a criada. Na última vez já a criada estava num lar de freiras e a loja era de outras pessoas.

A casa velhinha ainda lá estava, muito abandonada.

 

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publicado às 11:53

A escola de Cardigos

por António Tavares, em 10.02.17

A escola de Cardigos

A escola que todos nós frequentámos ficava na Vila de Cardigos. Tinha apenas 2 salas de aula. Uma para rapazes e outra para raparigas. As raparigas sempre tiveram um professor. Eu sempre tive uma professora, e sempre a mesma, de primeira à quarta classe. Nunca percebi porque é que era assim. Achava estranho, pronto.

Na sala estávamos alinhados em fila consoante a classe. Uma para cada classe. A professora punha os da primeira a fazer desenhos, os da segunda a faze uma cópia, os da terceira a ler algum texto enquanto os da quarta classe faziam um ditado. Em cada fila vinham para a frente os mal comportados. se insistissem a portar-se mal iam para o fundo da sala de pé contra a parede ou de joelhos no chão. Os bons ficavam no fim de cada fila.

Não havia aquecimento. Já eu andava na quarta classe quando foi encomendado ao meu pai a construção de uma lareira com chaminé em cada sala de aulas. O meu pai abriu um buraco no soalho com alçapão para guardar a lenha lá debaixo. Era nossa incumbência, sempre que regressávamos do recreio trazer paus e pinhas apanhados nos pinhais em frente da escola. Porque esses pinhais também eram os nossos recreios. E eu como mais arisco de todos é que subia aos pinheiros para derrubar as pinhas cá para baixo.

Cada sala de aula tinha uma régua. É verdade. Quando alguém se portava mal apanha umas severas reguadas. Nós bem puxávamos a mão para ver se a professora se aleijava. Às vezes conseguia-mos. Por vezes as réguas de desapareciam. Lá voltava a professora no domingo a dizer ao meu pai: ò ti Zé Maria, faça-me lá mais uma régua que a outra já desapareceu. Até que um dia a professora lembrou-se de descer lá abaixo para ver se havia lenha e deparou-se com meia dúzia de réguas escondidas debaixo do soalho. Assim ficou com uma reserva para uns tempos.

A escola tinha um átrio de entrada comum. Nesse átrio existiam cabides de madeira na parede, de cada um dos lados. Era onde pendurávamos as sacas de serapilheira nos dias de chuva. Desse átrio foi desenhado no recreio em frente um risco que, partindo do átrio, se dirigia até aos pinhais em frente e seguia por eles abaixo. Por esse risco corriam depois as águas da chuva. Foram-no alargando até ser um autêntico regato que era proibido ultrapassar. Rapazes de um lado, raparigas no outro. Não havia misturas de brincadeiras. Nem de casas de banho que não eram nem menos nem mais que as moitas que ficavam pelos pinhais abaixo. E o papel higiénico eram as pedras. Ou algum pedaço de jornal que aparecesse perdido.

Não havia água canalizada. A fonte no largo de Cardigos era abastecida por uma nascente numa mina no alto do vergancinho, para lá do casalinho. A água vinha num cano de ferro até junto da escola. Porque a escola ficava no ponto mais alto, foi construído um depósito em cimento mesmo ao lado da escola. Daí a água seguia por gravidade para o chafariz da praça. Nesse depósito foi instalada uma torneira onde os miúdos iam beber. Para as raparigas não havia problema. O depósito ficava no lado delas. Agora os rapazes tinham que esperar em grupo à porta da escola para irem acompanhados com a professora para beber água. Fazia um copo com os dedos e bebia-se diretamente da bica.

Brincadeiras não havia. As raparigas faziam rodas ou coisas parecidas. Os rapazes não queriam trazer brincadeiras ou porque não os deixavam ou porque se as trouxessem todos queriam as mesmas brincadeiras e lá vinham as guerras. De vez em quando lá aparecia um arco ou uma bola. O jogo da bola era o mais frequente. Havia sempre 2 que, por consenso eram os melhores jogadores. Um era do Benfica e outro de Sporting. Depois sorteava-se quem era o primeiro a escolher outro jogador. E a escolha ia continuando alternadamente. Normalmente todos tinham um nome copiado dos relatos de futebol. Eu era o Perídes. Estava na moda no Sporting. Foi aí que comecei a ser sportinguista.

A nossa professora namorava um rapaz que estava no Força Aérea em Tancos. Quando se começava a ouvir o barulho do motor de um avião todos nós tínhamos ordem de saída para o recreio. E lá vinha a avioneta a passar ao lado da torre da igreja. Em voo rasante sobra a escola eram largadas as cartas de namoro. Para nós era uma alegria correr pelos pinhais à procura das cartas. Dava meia volta e lá voltava direito a Tancos. Como a igreja de Cardigos ficava numa zona também alta e a torre era muito alta, estávamos sempre à espera de ver a avioneta a bater na torre da igreja.

A avioneta sumia-se mesmo por trás da torre da igreja. Mas claro que era só ilusão de ótica.

Cardigos saida da missa.jpg

 Saida da missa da igreja de Cardigos. Ao fundo a nova igreja em construção.

Cardigos visto do Casalinho.jpg

A Vila deCardigos vista do Casalinha.

A seta vermelha assinala a torre da igreja antiga (hoje centro de dia da miserecórdia). A seta preta assinala a torre da igreja nova

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publicado às 12:00

A caminho da escola

por António Tavares, em 10.02.17

A caminho da escola

Ainda fui para a escola de Cardigos juntamente com os meus irmãos mais velhos. Com o Mário, que era mais novo, nunca fui para a escola, porque ele foi enviado para casa duns primos da minha mãe em Canha (Setúbal), durante os 4 anos em que durou a escola primária. Assim as memórias mais vivas que tenho são das minhas idas e vindas, sozinho. Os livros e cadernos num saco de pano. Uma saca de serapilheira para por na cabeça nos dias de chuva. Dobrava-se ao meio, metia-se um dos cantos dentro do outro e protegia mesmo da chuva. No mesmo saco dos livros e cadernos levava a bucha para o almoço.

Muitas vezes a minha mãe não sabia o que enviar. Ò mãe, mande só pão e cebola. Almocei muitas vezes rodelas de cebola dentro do pão.

O caminho da escola era o tempo da minha meditação. O que faço eu aqui? Para onde vou?

Gostava de sair de casa cedo para ter tempo de arranjar qualquer brincadeira, qualquer distração. Até as árvores do caminho eram minhas colegas de brincadeira. Sobretudo se fossem árvores exóticas que me despertassem a atenção.

A um pinheiro bravo novo e esguio consegui dar um nó no tronco. Dobrei-o com cuidado, meti a ponta dentro da dobra, puxei para cima. Sempre que ia de férias ao Casalinho ia vê-lo crescer. E lá cresceu com um nó no tronco.

Logo à saída do casalinho o atalho que seguia pela fonte passava sobre um regato onde a minha mãe nos mandava apanhar poejos e hortelã do rio, quando era o tempo deles. Mais adiante havia 2 azinheiras. No tempo das bolotas gostava de subir pelos matos até elas. Sem ninguém me dizer nada apercebi-me que uma delas dava bolotas razoavelmente doces. Metia-as no bolso e lá ia roendo para a escola.

Numa quinta mais adiante e no meio duma vinha, existiam 2 enormes castanheiros. O meu pai estava sempre a ralhar que não queria que fossemos para a escola por ali. Já sabia que no tempo das castanhas nós pulávamos o muro para ir apanhar castanhas. E o dono já sabia que se aparecesse algo mexido tínhamos que ser nós. Mesmo assim eu insistia. Pulava o muro a correr, enchia os bolsos e fugia.

Mas como não as conseguia comer todas até à escola e não as queria levar para casa, descubri o modo de fazer um celeiro. Debaixo de umas moitas abri um buraco redondo no chão. Enchi de castanhas e tapei com terra. Assim, cada vez que ia para a escola, podia tirar uma ou duas. E descobri depois que com o passar dos dias ficavam melhores, mais moles. A humidade da terra fazia com que elas começassem a grelar e ficavam mais saborosas. Até que um dia cheguei e tinha o celeiro vazio. Algum rato do campo ou um ouriço-cacheiro o cheirou e reabasteceu-se.

Já perto da escola havia outra árvore que me despertava a curiosidade: uma nogueira. Tinha por hábito colher folhas dela para meter no meio das folhas dos livros. Fazia o mesmo com pétalas da flor das estevas. Tornavam os livros mais cheirosos.

Com isto tudo chegava muitas vezes atrasado.

Um dia lembrei-me de limpar de ervas uns palmos de terreno, debaixo de umas silvas. O sol batia em cheio naqueles 2 ou 3 palmos de terra. Espetei um pau na vertical meio. Reparei na sombra que fazia no chão. Com outro pau risquei a terra no local da sombra e pensei: quero ver se amanhã a sombra está no mesmo sítio.

Sem me aperceber tinha feito um relógio de sol. Dali para escola já eram só uns 100 metros. Não podia perder tempo. Se chegasse a horas e se no dia seguinte a sombra ainda estivesse antes do risco, sabia que podia demorar um pouco mais a brincar. O pior foi descobrir que o relógio se atrasava. Quando me descuidei voltei a chegar atrasado.

Tinha menos de 10 anos…

Casalinho visto de Cardigos.jpg

 O Casalinho visto de Cardigos

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publicado às 11:55

Pensar o futuro aos 10 anos

por António Tavares, em 04.02.17

Pensar o futuro aos 10 anos

Em criança era muito impulsivo, irrequieto, fazia muitas coisas sem pensar, dei muitas dores de cabeça aos meus pais. Também por isso sofri as consequências.

Aos poucos comecei a pensar que tinha que ter mais calma e medir melhor as consequências dos meus atos.

Tenho a noção perfeita de começar a ter consciência do que queria e como o queria durante a escola primária. Sei bem que foi a vida que me ensinou. Comecei cedo a ver à distância e a medir os passos para lá chegar.

Lembro-me bem que foi durante a quarta classe que comecei a pensar: e agora?

O Manuel tinha saído da escola e trabalhava na fábrica das velas a fazer velas de cera todo o dia. Ao mesmo tempo fazia de sacristão na igreja de Cardigos. Não era o que eu queria.

A Helena e a Lúcia tinham também acabado a quarta classe e como não tinham ocupação foram para a Telescola.

A Telescola era ministrada pela televisão. Havia um posto na sacristia da igreja de Cardigos, onde uma professora credenciada apoiava os alunos que queriam estudar, 2 ou 3 tardes por semana. Assim podiam fazer mais 2 anos de estudo: a quinta e sexta classe (1º ciclo).

Também não era isso que eu queria. Pensava muito sobre o futuro nas longas caminhadas entre o casalinho e a escola em Cardigos. Por vezes sentava-me na beira no caminho e dizia para mim: quero sair daqui. Tinha 10 anos.

Cardigos sempre foi um berço de muitos padres e de muitas atividades ligadas à igreja. No próprio Casalinho havia 2 padres, filhas da Ti Joaquina (ao colo de quem caí desmaiado depois de cair da oliveira): o Padre António que estava no seminário do Gavião e o Padre Serafim que estava numa paróquia em Tolosa (Alentejo). Havia aldeias como a Chaveira e Chaveirinha onde havia vários padres colocados em Seminários de Missionários.

Mas eu só mais tarde me apercebi dessa realidade. Nos meus 10 anos apenas conhecia o Casalinho e os seus 2 padres (que apenas lá estavam nas férias) e Cardigos com o seu pároco.

Certo dia entrou na sala de aula um padre que veio conversar com os alunos da quarta classe sobre o seu futuro e sobre o que queriam ser mais tarde. Ouvi-o com atenção sem perceber nada do que dizia. Não sabia o que eram seminários, missões, missionários, etc. mas cativou-me a sua conversa.

E quando ele perguntou: Quem quer ir para o Seminário? Eu pus-me logo de pé com o dedo no ar e respondi: quero eu! Fosse lá o que fosse o seminário. Fosse lá onde fosse. Penso que fui o único que respondeu assim. Pelo menos não me lembro de mais nenhum seguir comigo.

O Padre Norberto falou depois comigo pessoalmente. A professora também. Nunca mais me tiraram isso da cabeça. Falaram depois com o meu pai e num domingo na Vila a professora disse-lhe à minha frente:

- Como o seu filho quer continuar a estudar é melhor ele repetir a quarta classe. Ele se for a exame passa, mas assim sempre vai melhor preparado.

Já fui lixado, pensei eu. Agora tenho que ficar mais um ano aqui. Eu que me queria ir já embora. E nem sabia que ir para o seminário era ir para estudar. Mas não dei parte de fraco. Mantive a minha decisão. Eles trataram de tudo.

O exame da quarta classe foi na escola do concelho em Mação. Íamos todos na carreia da manhã, cada um acompanhado de um familiar (eu fui com o meu pai). Levavamos o almoço num saco. Os exames escritos eram de manhã. Os pais ficavam no jardim em frente. Depois da prova escrita almoçava-se nos bancos do jardim enquanto se esperava pelos resultados que eram afixados numa vitrina na porta de escola. Uns reprovavam logo (era vê-los a chorar e os pais a ralhar), outros ficavam logo apurados (era ver a alegria daquela gente, miúdos de 10 anos e familiares). Outros iam à oral, na parte da tarde. Foi o que me aconteceu a mim. O certo é que era realmente um dia de festa.

Acabada a escola foi tratar dos papéis para ingressar no seminário. Essa tarefa pertenceu ao Padre de Cardigos. Era necessário eu fazer um requerimento em papel azul selado de 25 linhas escrito pela minha mão.

Hoje já ninguém sabe o que isso é, mas antigamente era neste papel que se faziam todas as petições oficiais. E era caro. Sei que o meu pai teve que comprar várias folhas destas porque inutilizei muitas. Lembro-me, como se fosse hoje. Estava na sacristia e o padre ia-me ditando o que devia escrever. De tão nervoso que estava errava sempre na mesma palavra. “… eu desejo …”. Escrevia sempre “… eu dejeso …”. Como não se podia rasurar, toca a inutilizar e começar tudo de novo noutra folha azul de papel selado. Foram várias.

Quando chegava a altura o padre dizia: vá… com calma… atenção que a terceira letra é um j… j… Ao fim de várias tentativas lá seguiu o requerimento em que eu pedia que desejava entrar para o seminário.

Combinada a data de embarque lá foi o Manel levar-nos na carroça da mula cerca de 15 quilómetros, para lá dos Vales para apanhar a carreira de Proença-a-Nova para Coimbra. Como não sabíamos os horários perdemos a ligação em Coimbra. Tivemos que dormir uma noite numa pensão e apanhar a carreira no dia seguinte para Vila Nova de Poiares. Mais uma vez nos enganámos e ficamos no cruzamento da Estrada das Beiras com a Nacional nº 2. Dali até Poiares ainda foram alguns 5 ou 6 quilómetros a pé.

A Quinta das Camélias ia ser a minha casa nos próximos 2 anos.

Poiares.jpg

Vila Nova de Poiares - Quinta das Camélias - o que escrevi no verso

Poiares1.jpg

 Formação no pátio. O grupo de cá era do primeiro ano. o grupo mais afastado era do 2º ano

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publicado às 09:38

Casalinho

por António Tavares, em 01.02.17

Casalinho

O Casalinho é uma pequena aldeia da freguesia de Cardigos.

Hoje praticamente desabitada, tinha na minha meninice cerca de 8 a 9 famílias repartidas por 3 núcleos: o do cimo da aldeia, o do meio e o do fundo.

Cada núcleo juntava famílias com ligações estreitas e familiares entre si, que quase viviam em comunidade.

O apelido dos dois primeiros núcleos já não me lembro. Os de baixo eram os Tavares.

As ligações dentro de cada grupo eram tão fortes que partilhavam determinados bens como o forno do pão por exemplo.

Uma única rua ligava o cimo e o fundo da aldeia.

Os Tavares ligavam-se bem com os do cimo da aldeia, mas sempre houve uma animosidade com o núcleo do meio que nunca entendi.

O meu pai proibia-nos por exemplo de passar pela rua principal para não atravessar a zona do meio. Para irmos ao nosso quintal que ficava no cimo da aldeia seguíamos sempre por carreiros que ladeavam a aldeia por trás das casas. Mesmo com a carroça da mula seguíamos por esses carreiros. De tal modo que certa vez, era a mula ainda nova, difícil de ser domada, arrastou a carroça para o lado, uma roda subiu um muro e virou-se de rodas para o ar. Só a Lúcia vinha em cima da carroça. Felizmente não passou de uns simples arranhões.

O certo é que todos os terrenos em volta do Casalinho eram propriedade das famílias dos Tavares e das famílias do núcleo de cima. As terras das famílias do meio eram todas muito longe da povoação.

Curiosamente, estava o Bruno para nascer na clínica de São Miguel em Lisboa, quando nos apareceu no quarto uma senhora que me reconheceu e eu reconheci como sendo a Maria das Neves que pertencia ao núcleo familiar do meio. Nunca nos tínhamos falado. Era empregada da clínica e até nos emprestou uma televisão para a Fernanda ter no quarto. E levava-lhe fruta. Ironias do destino.

Não havia luz elétrica, nem casas de banho e nem água canalizada.

A luz era de candeeiros a petróleo e de lanternas de azeite. A água vinha do poço a que chamávamos fonte, que ficava a meio da encosta. Todos os dias tínhamos que ir lá várias vezes buscar água em bilhas de barro. Em casa despejávamos as bilhas para os 2 cântaros na cantareira. Tínhamos que repetir a ida há fonte até os cântaros estarem cheios. A casa de banho para as necessidades era nos pinhais atrás das casas. Quando conseguia-mos um pedaço de papel ou de jornal era uma alegria. Porque normalmente o papel higiénico era uma pedra. Há noite tínhamos bacios nos quartos. De manhã ia-mos despeja-los aos pinheiros. Lavar a cara era em bacias na rua, mesmo à porta de casa. Nas manhãs de inverno tínhamos que tirar primeiro o gelo que se formara de noite.

Mal o dia nascia abria-mos a porta do galinheiro e as galinhas iam todas de enfiada rua fora para os pinhais comer insetos. Quando as chamávamos elas vinham a correr para comer a ração feita de couves migadas, farelos e ossos esmigalhados. Depois seguiam novamente para os pinhais. De vez em quando alguém tinha que dar por lá uma volta para espantar possíveis raposas.

Mal o sol baixava no horizonte era vê-las em fila a caminho da aldeia, a entrarem nas respetivas capoeiras e a pularem para o poleiro.

Antes de se fechar a porta da capoeira, para evitar as raposas de noite, eram contadas. E de vez em quando lá vinha a mulher do tio Zé:

- Ó ti Delfina, veja lá se não está por aí a minha pedrês?

Casalinho1.jpg

O meu pai à entrada do Casalinho, o Tio Zé e a mulher à porta de casa. O meu pai e a minha mãe na carroça da mula.

Casalinho2.jpg

 O burro do ti Zé e a capela do casalinho.

Casalinho3.jpg

 Esta é uma foto de parte da nossa casa. A mãe na porta com 3 das filhas.

Os homens do casalinho.jpg

Os homens do Casalinho: Joaquim Nunes do núcleo cimeiro e as 3 famílias no núcleo fundeiro: Ti Zé Maria (meu pai), Ti Zé Tavares, o seu irmão Tio Virgílio (meu padrinho) com o filho Carlos ao lado. 

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publicado às 14:38

Aerograma para Maria Clara

por António Tavares, em 22.01.17

Aerograma para a Maria Clara

Acabaste de nascer há poucas horas. Sei que a tua vinda a este mundo não foi um mar de rosas. Mas já venceste a tua primeira batalha. És uma lutadora. Sei que vais vencer.

Estou aqui à tua espera porque temos muitas brincadeiras para fazermos juntos. Tenho muitas histórias para te contar.

Daqui a alguns anos quando leres estas linhas vais perceber que o teu avô também foi um lutador. A minha vida também não foi um mar de rosas.

Vou só contar-te agora um episódio das muitas histórias que tenho para te contar. Claro que não me lembro do que aconteceu. Mas vou cantar-te tal como a ouvi contar dezenas de vezes ao meu pai, quando nos juntávamos e ele já tinha bebido um ou dois copitos.

Nasci numa família numerosa na aldeia de Casalinho, freguesia de Cardigos. Era o quarto filho de uma família que chegou a ter 11.

Quando tinha 3 a 4 anos já havia outros mais pequenos. Eu deixei de ser o centro das atenções.

Sempre fui muito rebelde. Possivelmente aquilo a que chamam hoje hiperactivo.

O teu bisavô José Maria era mestre-de-obras. Saía todos os dias com a lancheira às costas para andar a pé 7 quilómetros para ir trabalhar nas obras em Vales. Porque era uma terra de ricos recém regressados do Congo Belga que se tornara independente. Vinham cheios de dinheiro e todos queriam fazer obras.

Nós ficávamos sozinhos em casa com a nossa mãe, onde havia pouca coisa para nos entretermos.

Eu adorava deambular pelos campos e subir às árvores.

Parece que um dia estando sozinho subi a uma oliveira. Em baixo estavam vários troncos de pinheiro ainda com restos de ramos cortados. Caí desamparado em cima dos troncos e espetei um desses ramos na cabeça. Levantei-me a cambalear e corri para a aldeia. A primeira pessoa que encontrei foi a  ti Joaquina sentada na soleira da porta. Atirei-me ensanguentado para o colo dela e desmaiei.

Chamaram o meu pai. Levaram-me de táxi ao médico a Cardigos. Ele viu-me e disse de imediato: é preciso levá-lo para o hospital em Abrantes.

No hospital levaram-me para o piso de cima. O meu pai ficou no piso de baixo e aí se manteve durante 8 dias enquanto eu lutava entre a vida e a morte.

Ao fim de 8 dias, como não havia evolução do meu estado, os médicos desceram para avisar o meu pai que me iam operar. O meu pai disse várias vezes que não queria que eu fosse operado, que me iam matar. Mas os médicos não quiseram ouvir e foram-se preparar.

O meu pai esgueirou-se escadas acima para me olhar para mim mais uma vez.

Quando se chegou à porta do quarto eu estava sentado na cama e disse-lhe: pai, a mãe não está aqui.

O meu pai nem me disse nada. Correu escadas abaixo e disse para o médico: senhor doutor, já não é preciso nada. O meu filho já fala e eu vou levá-lo já.

Embrulhou-me num cobertor, chamou um táxi e aí vamos nós de volta ao Casalinho.

Até hoje.

Parece que a minha madrinha já tinha encomendado a urna e estava a fazer os panos da mortalha.

Como vês também venci esta batalha e muitas mais que quero contar-te. A tua avó Fernanda também venceu algumas batalhas, que um dia te contarei.

Sei que os teus avós da Rapoula também têm muitas histórias. A tua mãe vai contar-tas um dia.

Força.

Estamos todos à tua espera.

Casalinho.jpg

O mais longe que vai a minha memória. A minha mãe e os seus pais há mais de 100 anos. Os primeiros 4 filhos (eu de caracóis). Na eira a descamisar o milho: a mãe no meio, a avó e o avô maternos á direita e o rebanho espalhado.

 Familia anos 60 em Cardigos.jpg

 Familia algures nos anos 60 em Cardigos

Familia na Casa da Praia.jpg

Familia na Casa da Praia anos 80

 

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publicado às 13:11


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