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A santa roubada e que partiu um braço

por António Tavares, em 25.04.17

A santa roubada e que partiu um braço

Cardigos é uma vila muito antiga. Anterior à nacionalidade. Foi terra de templários. Teve foral de D. Manuel. Foi sede de comarca no tempo dos Filipes.

Nos anos de 1950 tinha no largo principal um chafariz, o pelourinho, um poço, mas já não tinha o velho eucalipto. Foi cortado e queimado na praça na fogueira de Natal. Porque com ele ali não havia espaço para se fazer a queima do madeiro. Passou a fazer-se todos os anos a fogueira de Natal que tinha que arder até ao ano novo.

O fontenário era a único ponto público de abastecimento de água, até esta ser canalizada para as casas, após construção da barragem do vergancinho. Parte dos terrenos onde foi construída esta barragem era dos meus pais. Com as partilhas coube-me a mim a faixa de terreno entre o estradão que sobre do lado direito e o lençol de água.

O pelourinho ainda lá está. O Fontanário também, mas perdeu uma das torneiras e a cercadura de mármore em volta.

Cardigos tinha uma velha igreja no lugar onde hoje está a actual. Essa velha igreja ardeu em tempos muito antigos. Ainda me lembro, nos anos 50, das suas ruinas queimadas, envoltas em silvas e heras. Nós subíamos por cima das paredes, para ver os restos queimados do altar. No início do século XX o povo juntou-se para angariar dinheiro para construir uma nova.

Foi escolhido o melhor local, foi feito um projecto em planta cruciforme e foi iniciada a construção. Esta igreja era o “ai Jesus” do povo, porque foi feita pelo povo. As pessoas vinham à missa (não sei onde era ministrada) ao domingo e cada um trazia o que podia oferecer para a construção: uma telha, um tijolo, 2 tábuas, etc. E foi o povo com as suas mãos que a construiu. Dimensões grandiosas. Nunca chegou a ser bem acabada. A torre era enorme, mas internamente não estava sequer rebocada. Devia ter levado 4 sinos, mas apenas se conseguiu dinheiro para um. Bem grande e valioso.

O Manel chegou a ser sacristão. Mais tarde coube-me a mim, nas férias de verão, abrir a igreja muito cedo e tocar o sino ao nascer do sol.

Mas como a construção era de cariz popular e não sofreu obras de manutenção, no início dos anos 70 já tinha acentuados sinais de degradação. O pároco na altura meteu mãos à obra para a construção da actual, estilo moderno, no lugar da que antigamente tinha ardido. O povo não quis. Queria obras na SUA igreja.

O padre levou a dele avante e começaram as obras. Gerou-se um movimento popular que na altura chegou a ter alguma expressão. Vendeu o sino de bronze para custear as obras e quando vieram para o buscar a população fechou o padre na igreja para o linchar. Foi salvo pela GNR. Mesmo assim, numa noite, alguém subiu à torre e empurrou o sino para a rua. Partiu-se todo. Mas como o que importava era o valor do bronze. Foi levado. Nunca mais se ouviu o sino grande de Cardigos. Passou a ouvir-se a “sineta” da moderna igreja, comandada electronicamente.

A indignação atingiu tais proporções que chegaram a ir de comboio de Lisboa muitos naturais de Cardigos para ajudarem nas revoltas locais. Parece que o padre comandou mesmo uma contra-revolta que fazia esperas ao comboio e atiravam com pedras. Foram mesmo publicados panfletos em verso para tentar desmascarar o padre.

Das pedradas ao comboio

Lá perto do Entroncamento…

São os 2 únicos versos de que me lembro. Porque entretanto fui para a tropa e para Moçambique, soube que em 1972 a nova igreja foi mesmo inaugurada com pompa e circunstância pelas autoridades civis e militares…

A velha levou entretanto algumas obras, é gerida pela Casa de Misericórdia como centro de dia e centro social. Mas ninguém lhe tira o seu orgulho. Que as gerações vindouras lhe saibam manter a dignidade altaneira!

Na minha quarta classe (1960) lembro-me de o povo de Cardigos se juntar um dia no largo principal para receber com flores e foguetes um herói que acabara de cumprir 2 anos de prisão em Mação e que chegava na carreira das 2 horas. A professora fechou a escola e fomos todos para a praça esperá-lo.

É que existia naquele tempo uma humilde capela nos limites das freguesias de Amêndoa e de Cardigos, mesmo junto da estrada nacional. Cada freguesia reclamava a capela como sua. E o povo da Amêndoa, para que a capela passasse a ser de vez sua pertença, destruiu-a e reconstruiu-a uma dezena de metros mais adiante.

O povo de Cardigos não se ficou. Arranjou um herói que se dispusesse a ir roubar a santa e coloca-la no lugar da antiga ermida. O objectivo era que de manhã o povo a visse e acreditasse que fora um milagre. Que a santa queria a capela no antigo lugar.

Acontece que o pobre homem para ter essa coragem teve que beber uns copitos. E como já ia meio toldado deixou as pegadas em cima do altar e deixou cair a santa. Partiu-lhe um braço. Aí, pensou ele: ninguém vai acreditar num milagre em que a santa parte um braço pelo caminho. Solução: entrou pelo mato dentro, acabou de escavacar a santa e enterrou-a no meio das estevas.

Veio a GNR, ele foi descoberto e apanhou 2 anos de choça. E a capela já está em terrenos da Amêndoa. Os de Cardigos colocaram então apenas um cruzeiro de ferro (que ainda lá está) no lugar da antiga ermida.

Esta rivalidade entre as duas freguesias sempre existiu. Nas festas de Cardigos quando se ouvia dizer “olha aquele é da Amêndoa” chovia bordoada que fervia. Nunca entravam nos bailaricos.

A festa principal de Cardigos é dia de N. Srª da Assunção: 15 de Agosto. Nesse dia instalava-se um motor gerador fora da vila, instalava-se luz eléctrica nas principais ruas, havia coreto, música, fanfarra, as ruas atapetadas com murta, havia procissão e uma coisa que nunca mais vi: fogo preso. No final da festa havia foguetes e lançamento do balão com uma lanterna acesa lá dentro.

Nesse dia de festa tínhamos por hábito comprar a maior melancia que houvesse no mercado e um garrafão de vinho, ia-mos comê-la para debaixo das oliveiras e dormir a sesta na hora de maior calor.

O balão subia, subia até quase desaparecer no céu. E muitas vezes ao cair gerava incêndios. O lançamento destes balões acabou por ser proibido. E lá pela uma hora da manhã o meu pai pedia a um dos motoristas da serração para nos levar ao Casalinho, na caixa de carga da camioneta.

Mas o que mais me lembro é do fogo preso: figuras animadas que se mexiam com o arder dos rastilhos de pólvora. O rastilho ia ardendo e passava o movimento de uma figura para outra: ciclistas, rodas, palhaços, etc.

Mostro a seguir algumas imagens que retirei do site da Junta de Freguesia de Cardigos. Espero que não levam a mal.

Cardigos 1.jpg

O poço no centro da praça e o velho eucalipto.

Na rua à esquerda, lá muito ao fundo a igreja (com a sua torre) que o povo construiu.

pelourinho de Cardigos.jpg

O pelourinho. Aqui ainda visíveis os ferros para pendurar os criminosos.

Igeja de Cardigos.jpg

A velha igreja que o povo construiu. Era deste lado que estava o sino grande

Igeja de Cardigos 1.jpg

A nova igreja do padre, no lugar da primitiva que ardeu

Postal de Cardigos 1.jpg

Postal de Cardigos.jpg

Postais de Cardigos (anos 70) que a minha mãe me mandou

O velho chafariz com a cercadura de mármore já perdida.

 

 

 

 

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publicado às 18:20



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