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A guerra não era para mim

por António Tavares, em 16.02.17

A guerra não é para mim

Desde o dia do meu internamento no hospital militar de Nampula fui levado de 2 em 2 dias ao médico psiquiatra que tentava perceber as minhas reações. Falava-me na necessidade de eu recuperar, de voltar para junto dos meus soldados, onde fazia falta. Sempre cabisbaixo, barba grande, desleixado. Sem nunca lhe dirigir qualquer palavra, mandava-me voltar para o quarto. Que voltasse daí a dois dias.

Deitado na cama pensava no modo de conseguir prolongar o mais possível aquela situação. Nunca recebi uma única visita dos familiares que faziam vida na zona de Nampula e Nacala, mesmo sabendo que tinham sido avisados pela minha mãe. Tinha que ser eu sozinho.

Todos os dias vinha o furriel enfermeiro e deixava em cima da mesa de cabeceira os medicamentos.

- Sr alferes, estes são para tomar com o café, estes são para o almoço e estes são para o jantar.

Mal se ia embora despejava os medicamentos na sanita e puxava o autoclismo. Nunca tomei nenhum.

Como não estava acamado tinha que me deslocar à sala das refeições para comer. Fazia esse percurso arrastando-me lentamente apoiado nas paredes. Ao pequeno almoço apenas bebia uns golos de chá sem açucar. Voltava para o quarto. Ao almoço e ao jantar comia 2 colheres de sopa. Mais nada. Isto durou cerca de 3 meses.

A dada altura vieram dizer-me que estava outro alferes no quarto ao lado que queria falar comigo. Fui visitá-lo. Era o outro alferes da mesma companhia, que em Mueda me avisara que iria ter comigo ao hospital. Tinha sido operado aos dedos de um dos pés. Tinha apanhado um tiro que lhe decepou um deles.

Era já o terceiro alferes (dos 4 que a companhia tinha) a dar baixa ao hospital. O primeiro tinha ficado em Lisboa. Deu baixa ao hospital antes de embarcar.

Alegou que a G3 se disparou acidentalmente durante o percurso de Mueda para Mocímboa do Rovuma. Que ia sentado, juntamente com os soldados, em cima dos sacos de reabastecimento transportados na Berliet. E que num dos muitos solavancos do caminho puxou o gatilho sem querer. Porque lavava a arma engatilhada e pronta a disparar.

O certo é que foi operado. E com o pé engessado encontrei-o muitas vezes em festas, a tomar banho na praia, etc., sem qualquer proteção. Foi evacuado para Lisboa. Encontrei-o, passados anos, ainda fardado, no quartel de adidos da Graça. A ferida gangrenou, foi-lhe amputada a perna.

Mas … falando de mim. Ao fim de cerca de 3 ou 4 meses, em mais uma visita ao psiquiatra, diz-me ele:

- A guerra não é para si. Já percebi.

Rabiscou qualquer coisa, que nunca li, num papel e deu-mo.

- Vá-se embora. Vai para os Serviços Auxiliares.

Peguei no papel sem esboçar qualquer reação. Percorri o corredor até à receção e disse (finalmente) para o Sargento:

- Dê-me aí as minhas coisas que me quero ir embora.

- Há! Agora já fala. Tome lá e vá-se apresentar na 3ª repartição do Quartel General, ao Major ….

Não lhe dei resposta. Deu-me um saco com meia dúzia de pertences e fui-me embora do hospital. Apresentei-me na dita repartição, ao dito major. Foi-me indicado um quarto num dos muitos apartamentos espalhados pela cidade, destinados a alojar os oficiais. Arrumei as minhas poucas coisas e fui jantar. Já não comia há 3 ou 4 meses.

Dirigi-me à mais conhecida cervejaria de Nampula. Numa das principais avenidas, no rés-do-chão de um conhecido hotel, em frente à Casa Dias (a casa da moda mais in de Nampula).

Pedi 12 camarões tigre grelhados. Depois um bife grelhado. Bebi algumas bazucas. Estava regalado. E vingado.

Paguei e saí. Não devo ter andado mais do que um ou dois quarteirões. Comecei a ficar mal disposto. Vomitei tudo.

Mas estava feliz. Parecia premonição do Fado do Checa do Cancioneiro do Niassa:

...

Mas tem cuidado

“Checa” danado

Sê pouco anjinho

Manda-os lixar

Faz a tua guerra sozinho

Casa onde morava.jpg

A casa onde passei o resto da minha guerra

Casa Dias.jpg

A casa da moda: Casa Dias

Hotel em Nampula.jpg

 Mesmo atrás de mim o hotel em cujo restaurante jantei após sair do hospital

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publicado às 12:10


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