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Abílio

por António Tavares, em 09.05.17

Abílio

O Abílio sempre teve uma vida muito atribulada. Lembro-me de, no Casalinho, ter espetado um tronco de esteva numa canela. Tinha 4 ou 5 anos. Foi tratado como a mãe foi capaz. Com ajuda do farmacêutico e do médico em Cardigos. Ficou com uma lasca junto ao osso. Gangrenou e chegava mesmo a ver-se o osso. Felizmente dessa curou-se.

O nosso familiar (tio rico), era dono de vários negócios na zona de Nampula/Nacala. Salinas, padarias, descasque de caju, óleo de amendoim, etc. Vinha de férias alguns meses por ano. Ligava para o C. Santos em Lisboa para que tivesse no cais de Alcântara um mercedes no dia e hora que chegasse no paquete Funchal. Passeava 2 meses pela Europa fora e embarcava de volta, deixando o mercedes no cais.

Consta que um dia chegou até Telavive. Gostou e comprou um prédio de rendimento.

Noutra vez encomendou 2 mercedes para África. Um para ele e outro para a esposa. A esposa não tinha carta nem nunca a tirou. Os vidros partiram-se, os pneus furaram-se, as galinhas andavam lá dentro.

A sua casa foi desenhada em Lisboa e os mármores foram de cá já cortados, prontos a serem colocados.

Um dia em que cá estiveram disseram para a minha mãe:

- Como o seu filho não vai poder vir passar as férias cá à metrópole, pode passar as férias lá connosco.

Os seus 2 filhos tinham um andar alugado em Nampula para estudarem no Liceu. Tinha cada um o seu mercedes. No fim-de-semana iam para Nacala. Encontrei-os algumas vezes. Falavam em eu poder ir lá passar uns dias. Nunca concretizaram o pedido.

Uma vez perdi a vergonha. Meti-me no jeep e apareci lá. Ficaram admirados. Almocei com eles no salão de mármore, mas para dormir levaram-me para a cave, para dormir num sofá velho, cheio de teias de aranha, na companhia dos ratos. Deviam ter os 17 quartos da mansão ocupados!

Mas voltando aio Abílio…

Eles disseram à minha mãe que o podiam levar para lá. Que o criavam e que ele os podia ajudar. E foi.

Estava eu no despachante, em Lisboa, quando o Abílio foi atropelado em Santa Apolónia, enquanto esperava pelo embarque no paquete. Foi ao hospital e embarcou com gesso no braço. Acabou por ficar como criado deles, para todo o serviço, nas padarias de Nacala.

Quando eu estava em Nampula fui uma vez visitá-lo. Dormia num anexo destinado aos criados. Passei essa noite lá com ele. Mas pensei para mim: isto não é vida para ele.

Uns tempos mais tarde ligam-me de Nacala para a Messe de Oficiais em Nampula a dizer que o Abílio tinha tido um acidente de mota e precisava de ir para Hospital.

- Mandem-no de ambulância para o hospital de Nampula!

E mandaram. Passadas algumas horas ligam-me do hospital de Nampula a dizer que o meu irmão tinha chegado e que, para ele dar entrada, era necessário um depósito de 60 contos. Era fim-de-semana. Eu não tinha o dinheiro. Mas vali-me dos meus amigos (dos verdadeiros que sempre encontrei) e o dinheiro apareceu e o Abílio foi tratado.

Foi aí que o nosso familiar e vizinho do Casalinho, a viver em Nampula, que produzia e vendia bananas, que tinha o armazém cheio delas a apodrecer, me vendia as bananas já meio podres, ao preço que vendia ao público. Mesmo sabendo que eram para o Abílio que estava no hospital ao fundo da rua. Onde ele nunca fez uma visita. Sempre esperei que ele dissesse: leva lá esse cacho de bananas. Não é nada. Mas nunca disse.

Aí tomei uma decisão e comuniquei-a ao Abílio: vou-te mandar de volta para os pais.

Comprei passagens aéreas e no dia marcado lá estava o Abílio no aeroporto de Nampula, para embarcar para Lisboa. Azar. Diz o oficial da PIDE no aeroporto:

- Não pode embarcar. Como é menor precisa da autorização dos pais.

- Mas com os pais vai ele ter!

- Pois é mas leis são leis.

Pela primeira vez o meu tio me ajudou. Meti-me no jeep e fui-lhe pedir, por favor, que intercedesse a nosso favor. Sabia das suas ligações ao poder local. Levei-o ao aeroporto e lá convenceu o oficial da PIDE a deixá-lo embarcar.

O Abílio veio de Moçambique com a mesma quarta classe que levou de cá. Depois de regressar empregou-se no Ministério da Educação, tirou o Liceu, licenciou-se em gestão, foi inspector das Finanças. Tem um bom grupo de amigos. Fazem caminhadas e corridas. Passeia. Corre. Tem uma boa casa em Queluz (acabou por comprar a casa que alugáramos em 1970), com 5 assoalhadas. Sê feliz meu irmão!

Abílio, falo aqui de ti porque gosto muito de ti e a tua vida de resistente inspira-me. A vida tem-nos separado, mas nunca te esqueço. Desculpa se o que aqui escrevi não condiz a 100% com a realidade. Mas a esta distância alguma coisa pode não ter sido bem recordada.

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publicado às 15:02

Partida para Moçambique

por António Tavares, em 06.05.17

Partida para Moçambique

Durante a especialidade em Mafra, preparei-me para fazer a admissão ao ISE. Em Julho de 1971 pedi licença para ir fazer os exames a Lisboa. Fui e fui admitido. Mas já era tarde de mais. Já não podia pedir adiamento de incorporação.

Pedi ao Mário que me arranjasse os livros pelos quais a Ana estudava (andava no ISE) para eu ir lendo em Moçambique. Arranjou-me o Pereira de Moura (era a bíblia) mais alguns livros e algumas sebentas. Foram todos roubados em Mueda.

Havia em Torres Novas um alferes que devia pesar perto de 150 quilos. Pensa-se que foi o seu peso que evitou que fosse mobilizado para o ultramar. Tinha um Fiat 600 e um gosto especial por petiscos. Quem ia com ele tinha que ocupar os bancos de trás do Fiat. A frente era só para ele.

Íamos com frequência beber uns copos a uma taberna nas Terras Negras. Com a sua bonomia era uma pessoa muito bem-disposta. Dizia que tinha por hábito fechar os olhos quando guiava a direito e que os abria sempre antes da próxima curva.

Certo dia, vínhamos das Terras Negras, abriu os olhos tarde de mais e só parámos dentro de um campo de couves. Os quatro conseguimos por o Fiat na estrada. O pior foi quando chegamos à cidade e quisemos ir meter gasolina. Saímos todos para nos limpar e quando fomos embora deixamos a bomba de gasolina cheia de terra. É que tinha chovido e, quer nós quer o Fiat, pingávamos lama por todo o lado. O homem da bomba de gasolina ainda lá deve estar a fazer barulho, neste momento…

Finda a instrução, em Março de 1972, deu-se início à preparação para embarcar para Moçambique. Todos em tronco nu, sentados num banco corrido, uma perna para cada lado, passava o enfermeiro com uma seringa enorme e dava uma espetadela em cada um. Era a chamada dose cavalar.

Era autorizado aos militares deixar cá, na metrópole, cerca de 60% do ordenado. Ia ganhar cerca de 10.000$00. Decidi deixar cá 6.500$00. Informei-me sobre que companhia de seguros fazia seguros de vida de militares que iam para o ultramar, que cobrissem o risco de morte. Só havia uma: a francesa La National Vie. Contratei um seguro, já não me lembro de que valor. O beneficiário, em caso da minha morte era o meu pai. Paguei a primeira anuidade e avisei a minha irmã Helena (era a mais velha) que tinha dado o nome dela para ficar a receber todos os meses os meus 6 contos e quinhentos e pedi-lhe para os depositar na minha conta no banco. E ela pagaria desse valor as restantes anuidades do meu seguro de vida.

Não sei como nem porquê o meu pai veio a saber que tinha dado o nome dela para ficar a receber o dinheiro. A helena disse-me que o pai não tinha ficado nada contente. Mais uma vez não me disse nada a mim. Mas para evitar confusões troquei o nome dela pelo do meu pai. Mas disse à Lena que lhe mandaria todos os anos o valor necessário para pagar a anuidade dos seguros. E mandei sempre.

Quando escrevia à mãe dizia-lhe:

- Ó mãe, olhe que o dinheiro que vocês aí recebem é do meu ordenado. Guardem-me algum para eu reiniciar a minha vida quando aí chegar.

A mãe respondia que sim. O certo é que quando cá cheguei nem um tostão tinham guardado. Quando regressei para o despachante, em pleno período PREC, entramos em autogestão. Recebi, passados uns meses uma autopromoção com retroactivos que me permitiram comprar, a pronto, um Fiat 128. Mas não tinha dinheiro para o seguro, já na altura obrigatório. Pedi à minha mãe que ao menos me ajudasse a pagar o seguro. Afinal tinham recebido 6 contos e quinhentos do meu ordenado durante 2 anos.

A mãe respondeu que o dinheiro tido ajudado este e aquele… (disse-me os nomes!), que não tinha o que lhe pedia, mas mandava o possível.

Sabes Lúcia… lembras-te de quando ias ter comigo à Marconi, ao pé da Feira Popular, a pedir que também tinha que contribuir para comprar uma televisão para os pais no Casalinho e eu dizia que não podia? Não te quis dizer, na altura, que já tinha ajudado a todos vocês o suficiente, com o meu ordenado, durante dois anos. Afinal eu fui, de todos, o que mais ajudou os pais e não só. Eu sei que o pai pensava que o dinheiro que recebia era um subsídio do estado por ter um filho na tropa. Mas não era. Era o meu ordenado. E eu disse-lhes, por carta, muitas vezes. E muito me custou, com a ajuda de pessoas que não me eram nada, conseguir ir para a tropa como oficial a ganhar mais de 10 contos por mês… em 1971…

Voltando a Torres Novas…

Comprei a revista Crónica Feminina. Publiquei um anúncio: “Alferes miliciano deseja corresponder-se com raparigas …. SPM XXXX”. Era usual os militares colocarem estes anúncios em revistas femininas, para terem amigas com quem se corresponder. Eu tinha pedido às minhas namoradas platónicas para se corresponderem comigo. Da Graça não consegui nada. A Nônô ainda me escreveu algumas vezes.

Devido às peripécias da minha chegada a Moçambique (Beira, Porto Amélia, Mueda, Hospital), só 2 ou 3 meses depois recebi as primeiras cartas. E a primeira entrega (ainda no hospital) foi um saco bem recheado de cartas. Algumas até do Brasil: Vitória, Piauí.

Não podia responder a todas. Fiz uma selecção: melhores palavras, melhores letras, melhores localizações, etc. Mesmo assim ainda respondi a algumas durante algum tempo. Depois foi a selecção natural. A cativação pelos diálogos escritos e a assiduidade. Ficou a Fernandinha (sempre lhe chamei assim), a mãe dos meus filhos e minha companheira à 42 anos.

Voltando novamente a Torres Novas…

Na véspera de embarcar para Moçambique fui ao Quartel do Entroncamento buscar um soldado que estava preso (nunca soube porquê) e que tinha sido castigado com a mobilização forçada. Partimos no dia seguinte em camiões para o aeroporto militar de Lisboa.

Fomos das primeiras companhias a embarcar nos 2 novos Boing 707 brancos da Força Aérea e não nos velhos Paquetes Vera Cruz e Funchal. Cada avião levava uma companhia inteira, mais de 300 homens.

Dos 4 Alferes que faziam parte da nossa companhia, um não compareceu ao embarque. Tinha dado baixa ao Hospital Militar Central de Lisboa. Nunca mais o vi.

Eram 10 horas da manhã. 12 horas depois estávamos no aeroporto de Luanda. Já era noite, saímos e senti, pela primeira vez, o bafo do calor de África. Umas horas depois embarcamos de novo com destino à Beira.

Depois de uns dias de descanso, de ter sido levado pela 2oposição” e pela “contra-espionagem” a fazer o tirocínio pelos bares da cidade, de ouvir e cantar o cancioneiro do Niassa várias vezes, aí vamos nós de avião (agora da DETA, companhia moçambicana) rumo a Porto Amélia.

A partir daqui iríamos embrenharmo-nos na guerra…

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 Eu, os meus Furriéis e os meus cabos.

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publicado às 15:42

A casa de Queluz a Nônô e os óculos de cascas de laranja

por António Tavares, em 26.04.17

A casa de Queluz a Nônô e os óculos de cascas de laranja

Mantive-me na pensão da Rua de Stª Marta até à ida para a tropa. Entretanto o Manel também tinha vindo para Lisboa tirar um curso de Offset. Como tínhamos familiares no Ministério da Educação ele conseguiu depois lá um lugar na reprografia. A Lena e a Lúcia também tinham vindo para Lisboa para empregadas internas na casa de uma senhora da sociedade, irmã do Sr Visconde. Tinha sido o primo Manel de Moura que dera um toque ao Sr Visconde. Estiveram lá pouco tempo. A Lúcia foi para uma casa de freiras e a Lena acabou por ir trabalhar também para o Ministério da Educação e alugou uma parte de casa no Bairro Alto.

Estava na tropa em Mafra e vinha a Lisboa aos fins-de-semana. Costumava ficar com ela.

Nessa altura tinha um amigo da Roda, mais velho, que também fora seminarista, o Tonito. Ele tinha uma amiga que conhecera dos seus tempos de tropa na Amadora. Essa amiga tinha mais 2 irmãs. Eram oriundas de Elvas e moravam com os pais na Amadora. Parece que ainda eram conhecidas daquele que cantava “Ó Elvas, Ó Elvas, Badajoz à vista...". Essas raparigas eram interessantes porque a mãe era chinesa de Macau. O pai delas fora lá sargento do exército. E aquela mistura de português e chinês dei-lhes um traço característico.

Sempre que vinha a Lisboa, eu o Tonito tínhamos companhia para o fim-de-semana. Ele com a mais velha e eu com a do meio. Íamos à praia a Carcavelos e ao Estoril, percorríamos os cafés da Reboleira e Amadora, íamos dançar e beber uns copos para uma boite que abria as portas aos domingos à tarde para a malta mais nova e que ficava na Rua Filipa de Vilhena. O Tonito chegou a namorar com a mais velha. Acabou por casar com uma rapariga lá da terra. Eu tentei alguma aproximação à irmã do meio. Foi o meu segundo amor platónico. Ainda hei-de falar do primeiro. Mas sempre que lhe puxava pela conversa ela dizia que tinha um namorado que era piloto da Força Aérea. Nunca o vi. O certo é que passávamos muitos fins-de-semana juntos. Mas fiquei-me apenas pelo amor platónico pela minha chinesinha Nônô…

Quando fui para Moçambique levei o seu contacto. Ainda escrevemos algumas cartas. Nunca existiu empatia e acabou.

Quando regressei da guerra e fui estudar para o ISE estava ela a acabar o curso. Apenas nos cumprimentávamos. Depois encontrava-a regularmente na Rua da Prata. Ela vinha de comboio da Amadora e apanhava o eléctrico para o Arco do Cego. Trabalhava na Casa da Moeda.

Como eu e alguns dos meus irmãos já estávamos em Lisboa foi por sugestão do Tonito que começamos a procurar casa para alugar para todos. Um dia fui com ele a Queluz ver uma casa disponível. Levei lá a Lena e ficamos com ela. Tinha 5 assoalhadas. 2 quartos para os rapazes e 2 para as raparigas.

Atrás de nós vieram os outros todos. Até que ficaram apenas os pais em Cardigos. Eu estava na tropa. E eles lá foram arranjando emprego, a maioria deles no Ministério da Educação. O certo é que a vinda para Lisboa abriu os olhos a eles todos. A maioria acabou por estudar à noite, acabaram por tirar cursos superiores e arranjar empregos melhores.

O Mário também deu as suas voltas na vida. Foi tirar a escola primária a Canha, perto de Setúbal, a casa de familiares da parte da minha mãe. Quando vinha a casa nas férias do Natal trazia de lá laranjas. Eram as maiores laranjas que já vira. Enormes. Tão grandes eram que a minha mãe descascava-as e dava a cada um apenas um ou 2 gomos. Mesmo assim havia guerra pelas cascas. Para comer a parte interior da casca. Estas laranjas serviam para fazer óculos: eu cortava 2 lascas da casca em lados opostos. Depois cortava uma tira da casca entre as duas lascas sem a separar. Por fim tinha que meter a faca por dentro da casca e separar toda a casca do miolo. Enfiava a tira debaixo do chapéu e afastava os dois buracos para os lados, ficando um em cada olho. Era assim que eu brincava.

Depois o Mário esteve no seminário de Poiares. Tentou e não se deu bem. Acabou por ir tirar o liceu a Castelo Branco. Usava a barba grande e os cabelos enormes. Cada vez que vinha ao Casalinho havia sempre discussão com o pai. Quase chegavam por vezes a vias de facto. Ele não queria aquelas guedelhas. Ele veio depois para Lisboa tirar Medicina. Teve ligações esquerdistas. Constou-me, depois de eu vir de Moçambique, que uns dias antes do 25 de Abril alguém ligado à PIDE batera à porta da casa de Queluz a perguntar por ele.

Depois do 25 de Abril as suas ligações esquerdistas levaram-no a participar em actividades de apoio local em locais mais desprotegidos. Num bairro de barracas da Amadora participou na construção de um espaço para apoio social e escolar.

A casa de Queluz serviu para todos nós. Até para receber o pai depois de adoecer e a Mãe quando ficou viúva. Foi lá que faleceu o pai e mais tarde a mãe.

Foi para lá que fui morar quando vim de Moçambique. Foi de lá que saí para ir casar. Lá faleceu o João, vítima de um ataque epiléptico nocturno. De lá saíram os meus irmãos todos menos o Abílio e o Alberto. Quando o senhorio vendeu o andar, o Abílio comprou a parte dele e a parte do Alberto. O Alberto foi depois comprar uma para ele para os lados de Sintra.

A dada altura a minha mãe chamou os filhos todos. O Manel já tinha falecido. Veio a viúva. Havia feito lotes dos terrenos todos como ela entendeu. Escreveu os nomes em papelinhos e enrolou-os. A começar pelos mais velhos cada um tirou um papel. Para mim ficou o Covão do Rocinho e parte do Cabril, entre o estradão e o lado direito da barragem. A casa ficava para todos. Assim evitou a guerra de partilhas e faleceu em paz.

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 A barragem do Casalinho com água preta, fruto dos incêndios de 2003. A maior parte dela construida em terrenos dos meus pais.

Os terrenos de lá ficaram para um dos meus irmãos. Uma tira que restou do lado de cá ficou para mim.

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O Covão do Rocinho: a horta e os terrenos que me calharam, ardidos em 2003.

À esquerda a Fernanda, a mãe dela (D Palmira) e os meus filhos Bruno e Tiago.

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publicado às 12:11

Aprendi muito com o pai

por António Tavares, em 22.04.17

Aprendi muito com o meu pai

Os cereais que mais semeávamos eram o milho, o trigo e o centeio. Durante o inverno comia-se broa e pão de trigo no verão. Não tínhamos forno. Usávamos o forno do Ti Vergílio. Só se cozia pão uma vez por semana.

Mas para moer os cereais o meu pai tinha que ir na carroça levar os sacos de grão ao moleiro que operava um moinho de vento no alto de um monte, para lá dos Vales, já próximo do Vergão em terras de Proença-a-Nova. Uns bons 10 quilómetros. Ia levar o grão e voltava dias mais tarde para buscar a farinha no dia combinado. Deixava a maquia para pagamento: 1 em 10.

Nos meus 5 ou 6 anos passei a ir com ele, para deixar a mãe e os mais novos em paz. Ao princípio o moinho era de vento. Nas últimas vezes que lá fui já era movido a motor a gasóleo.

Por não ser prático o meu pai convenceu o meu padrinho (Ti Virgílio) a ceder um terreno junto ao ribeiro do vergancinho para construir um moinho para uso comum. Ele acedeu e colaborou na sua construção. Quem o construi foi o meu pai. Eu ia para lá porque gostava de observar a evolução das obras e porque a minha mãe não me podia aturar. Assisti à construção da represa no ribeiro, da levada da água, do arco do rodízio, em pedra, do próprio rodízio talhado em madeira de pinheiro, da tremonha, etc. Fazia perguntas constantes ao meu pai. Tinha que perceber como tudo funcionava. Tinha 5 ou 6 anos e andava por cima dos muros, de um lado para outro. Catrapumba… cai lá em baixo e parti a cabeça, mais uma vez.

As mós eram de granito que não havia na zona. O meu pai foi busca-las na carroça lá muito para o norte. Nem sei onde.

Sempre que começava a chover, fosse de dia ou de noite, lá íamos a correr pôr o moinho a andar e a moer. Porque só podia moer quando no ribeiro corria água.

Ainda hoje são visíveis as ruinas do moinho no final do lençol de água da barragem do vergancinho. Subindo pelo estradão do lado direito da barragem, vêem-se na margem oposta.

Pela mesma altura o meu pai construiu a nova casa do Ti Virgílio. Um prédio! Água encanada dum poço no monte para lá do vale. Casa de banho com torneiras e banheira. Nunca tinha visto nada assim.

O meu pai escavou os alicerces na encosta, até apanhar solo firme. Isso eu percebi. Não percebi é porque é que a base do alicerce era em escada, sendo que os degraus eram mais baixos para o lado onde a encosta subia. E perguntei-lhe. Sempre me explicou tudo:

- Não vez que assim a parede fica a fazer pressão para cima e não desliza pela encosta.

Eu achava o meu pai muito esperto e inteligente. O que aprendi com ele nas obras foi-me muito útil mais tarde aquando da construção da Casa da Praia.

Quando casou, veio para Lisboa trabalhar nas obras. Dizia-me ele que foi colega de pessoas que depois se tornaram afamados construtores como o J Pimenta. Contava-me que a empresa dele alcatroou as ruas do Bairro da Encarnação e construiu as escadas do Bairro da Boavista em Campolide.

Era na altura da II Grande Guerra. Que se lembra de em Lisboa se fazerem simulações de ataques aéreos. Apagavam-se as luzes da cidade e surgiam no ar apenas as sirenes e as luzes dos holofotes pesquisando no ar aviões inimigos.

Mas cada vez que ia a Cardigos aparecia mais um filho. Até que por causa da guerra e da crise, desistiu de Lisboa e foi construir para Cardigos.

Era aos domingos, depois da missa das 11 que se faziam os negócios, durante o circuito das tabernas. Quem precisava de trabalho juntava-se com quem oferecia trabalho. Faziam-se os pagamentos da semana anterior e combinavam-se os trabalhos para a semana (ou semanas) seguintes. Quem recebia pagava uma rodada. Primeiro só vinho. Para o fim do dia já era cortado: meio vinho meia gasosa. Eu queria sempre acompanhar o meu. Só bebia gasosa.

Foi aqui que aprendi a olhar para o chão quando andava na rua. O meu pai ensinou-me a abrir todas as caixas de fósforos que visse no chão. Explicação: os pobres aldeões guardavam os trocos dentro das caixas de fósforos. Assim sempre aparecia, de vez em quando, alguns cruzados ou tostões.

Estava eu no seminário quando o Manel seguiu os passos do meu pai na construção. Havia em Cardigos vários empresários que tinham empresas de construção com alguma dimensão, a operar principalmente em Lisboa. O Manel foi com um deles. Foi trabalhar para alcatroar uma das estradas da Serra da Arrábida. Conduzia um dumper a transportar alcatrão. Ficou mal travado. O dumper deslizou e ele foi apertado contra outra viatura. Foi internado. Teve que ser operado e foi-lhe extraído o baço. Não morreu disso. Morreu dos excessos… penso eu.

Bodas de ouro.jpg

 Bodasde ouro... no Casalinho

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publicado às 14:50

Seminário de Fátima

por António Tavares, em 15.03.17

Seminário de Fátima

Completados os 2 anos do 1º ciclo (atual 5º e 6º ano) regressei ao Casalinho. Nesse verão de 1965 recebi no Casalinho a visita do padre Dionísio. Era motard e apareceu de mota. Convidou-me para dar um passeio com ele visitando os seminaristas que moravam nas aldeias vizinhas. Era uma maneira de manter os contatos e preparar o regresso em outubro, agora para o seminário de Fátima.

No casalinho convenceu os meus pais a reservar um quarto só para mim. Já que ia ser padre convinha dormir num local mais resguardado. O meu pai arranjou um divã para eu dormir num canto daquilo a que se chamava sala, mas onde eu nunca tinha comido. Aliás a única vez que me lembro de lá ter comido foi quando lá fui com os meus futuros sogros, para a apresentação formal.

Depois fomos na moto visitar um seminarista nas Cimadas Fundeiras, já em Proença-a-Nova e o Manuel Nunes lá para os lados de Cernache do Bonjardim.

No outubro de 1965 lá fui eu apresentar-me no seminário da Consolata, em Fátima.

Era um edifício imponente. As rotinas eram as mesmas. Mais uma vez, nos 3 anos que lá passei, não me lembro de nada que fizesse lembrar os abusos que hoje se relatam, sobre os rapazes.

No entanto foram os anos em que me apercebi que estava a amadurecer como homem. Passei dos 15 aos 17 anos.

Os padres compraram-nos giletes para cortarmos os pelos que iam despontando na cara. Mas nada nos disseram sobre os pelos que também iam aparecer mais abaixo. E se eu cortava os da cara também deveria cortar esses. Pensei. Foi o que passei a fazer às escondidas na casa de banho, na altura do banho. Só que quanto mais os cortava mais fortes eles cresciam. Tive que desistir.

Uma das tarefas que me foram atribuídas foi a de guarda da arrecadação das ferramentas. Na altura das limpezas eu distribuía as vassouras, as pás, a dose de serradura para ser misturada com água e espalhada para agarrar a sujidade antes de varrer. No final da limpeza recebia tudo de volta, limpava e arrumava.

A arrecadação ficava mais baixa que o nível do solo. Desciam-se alguns degraus. No terreno em frente passava com regularidade a rapariga da receção do Hotel PAX que ficava mesmo ao lado do seminário (pertencia aos padres).

Jovem, bonita, pequenina, mini saia a meio da coxa. Era moda na altura. Quando ela passava eu escondia-me no fundo da arrecadação, para não ser visto e para ter um angulo de visão o mais baixo possível.

As cozinheiras do seminário costumavam vir aproveitar o sol para uma zona de ervas atrás das sebes junto da horta que ficava ao lado da arrecadação. Eram bastante mais velhas. Mas sem ser visto lá ia eu espreitar pelas sebes.

Quando se iam embora tinha por hábito passar por lá para ser se tinham perdido alguma coisa. Reparei nuns papéis escritos à mão e rasgados em pedaços pequeninos. Apanhei-os todos e tentei colá-los. Não consegui. Apenas percebi algumas palavras. Tinham a ver com desgosto de namorados.

Foi este o meu despertar…

O hotel PAX era um edifício moderno, foi construído pelos padres, nos 3 anos que lá estive, para rentabilizar os terrenos. Assisti à terraplanagem, ao transporte de camiões e camiões de pedras para os alicerces. Fomos levados a colaborar na construção das fundações, transportando as pedras em carros de mão. Apercebi-me que a parte mais funda tinha uma formação em anfiteatro. Perguntei a um padre para que era aquilo. Reposta: é para fazer um cinema. Depois podemos vir aqui ver filmes. Só podia ser para nos animar a carregar pedras.

Claro que nunca lá entramos. Era apenas a zona de eventos do futuro hotel.

Mais tarde, quando já trabalhava no despachante, vim a saber que o meu patrão, Despachante Oficial, senhor visconde de Fonte Boa, colaborador dos Cursos de Cristandade, tinha uma suite reservada para o seu uso exclusivo neste hotel.

Um dia um dos padres pediu-me para guardar por uns tempos a sua viola na arrecadação. Não sabia tocar viola. Muito menos iria ter dinheiro para comprar uma. Pensei: posso construir uma. Tinha à mão uma velha placa de contraplacado. Tirei o molde da viola do padre. Recortei com uma serra. Nunca passou dali. Por muito que pensasse nunca consegui imaginar como conseguiria fazer as restantes partes da viola e como as iria unir.

Morreu ali mais um sonho…

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Eu na entrada do seminário de Fátima

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Eu com um transistor na mão e mais 3 seminaristas na alameda de entrado do seminário. À direita o edifício da arrecadação. Do seminário apenas se vê um bloco. Ficavam mais dois para a esquerda.

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 Seminário de Fátima à esquerda e Hotel Pax em frente.

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publicado às 09:57

Infância dificil

por António Tavares, em 14.03.17

Infância difícil

Sei que fui uma criança difícil. Sei que dei muito trabalho aos meus pais. Teria sido aquilo que hoje se chama de criança superativa.

Sempre quis fazer coisas, copiar e reproduzir brincadeiras.

O Carlos (filho do meu padrinho) recebia regularmente presentes caros dos tios ricos. Eu também queria. Ele recebeu um triciclo. Nunca mo emprestou. Decidi construir um carro a pedais.

Já tinha feito vários carros. 3 tábuas, 4 rodas cortadas de toros de madeira, pregos e estava feito. O meu pai fartava-se de ralhar porque lhe fazia desaparecer os pregos todos. Para não o ouvir ralhar arrancava pregos de tábuas velhas, endireitava-os e usava-os. Desta vez decidi substituir a tábua da frente por um ferro dobrado de maneira a poder ser pedalado. A dificuldade consistia em ligar esse ferro às rodas feitas de toros de madeira. Nunca funcionou. Tinha 9 anos.

Brincar com uma aduela de barril empurrada por em ferro curvado era a maior brincadeira que conseguíamos. Mas as aduelas eram curvas para um dos lados. Logo nunca andavam a direito. Um dia encontro um aro feito de ferro redondinho. Suprema felicidade. Era mesmo o que queria. Para que ninguém brincasse com ele nunca o levei para casa. Deixava-o escondido no mato. Ia para lá brincar e depois deixava-o lá. Um dia o aro embala encosta a baixo, galga matos e moitas, corro atrás dele mas não o apanho. Todos os anos quando voltava ao Casalinho lá ia eu percorrer a encosta a ver se o encontrava. Entretanto o mato foi roçado várias vezes. Alguém o deve ter encontrado.

Quando ia pastar as cabras gostava de levar comigo uma enxada e um canivete. Enquanto elas pastavam eu abria caminhos e estradas pelos matos. Quando voltava mais tarde limpava-os novamente e prolongava-os. Simulava curvas e descidas inclinadas. Não tinha carros para passar por elas. Passava eu.

Construía carros e barcos cortando com o canivete as carrascas de pinheiros. Viajava com eles em sonhos.

Normalmente levava para almoçar uma morcela ou farinheira e um naco de pão. Levava fósforos. Acendia uma fogueira entre duas pedras. Assava os enchidos espetados num pau.

Os fósforos deram-me ideia de construir bombas. Passei a levar também um prego. Com ele abria um buraco num tronco seco de oliveira. Descobri que era a madeira mais rija disponível. Logo o estampido deveria ser maior. Enchia o buraco com cabeças de fósforo. Empurrava o prego contra elas e dava uma martelada com uma pedra. Pum … Depois do estrondo punha-me à escuta a ver se aparecia alguém. O meu pai dizia que a GNR andava por ali às vezes.

Quando saía com as cabras para os lados da Cardosa, assim que atravessava a estrada de Cardigos elas já sabiam que iam para o Vergancinho. Largavam-se a correr que nem doidas e só paravam em cimo do morro das heras. Tratava-se de um morro de pedras construído para proteger uma horta e um pomar das eventuais inundações do ribeiro. Para proteger o morro plantaram heras que tomaram conta do morro todo. Para elas era um banquete.

Enquanto comiam sossegadas eu brincava. Descobri por perto um poço abandonado entre silvas. Pensei que estaria mesmo abandonado. À volta do poço estavam, amontoadas, as pedras que foram arrancadas de dentro dele. O que me havia de lembrar: empurra-las de volta para o poço. Adorava vê-las a rolar e catrapumba … ouvi-las cair dentro do poço.

Claro que descobriram que fui eu. O meu pai viu-se obrigado e esvaziar o poço para as retirar. E voltei a fazer o mesmo a um poço do meu padrinho, mesmo perto do Casalinho.

Aos 5 anos, a minha mãe tinha 3 filhos mais novos para criar (Mário e os gémeos Isaura e Abílio) pelo que fui entregue aos meus avós paternos, na Chaveira. Distava 4 ou 5 quilómetro do Casalinho. Por lá me mantive contrariado. Não tinha com quem brincar nem com o que brincar.

Roubei-lhes um canivete para me distrair. Escondi-o num buraco entre duas pedras do palheiro. Apanhei até contar onde estava. Ficava horas debaixo das escadas da casa em frente. Era como se fosse o meu abrigo. A casa estava abandonada e ali os avós viam-me sempre que chegassem à janela. E ainda gostava mais quando chovia. Brincava apenas com os sonhos.

Estava proibido da sair do pé da casa. Muito menos ir para o pé do sapateiro que cozia solas na rua de baixo. Que era para onde gostava de ir ver o homem a espetar a sovela e puxar o fio.

Quando o meu avô dava pela minha falta já sabia onde eu estava. Vinha-se por na curva da rua com o cinto na mão. Na parte de fora da curva. Eu corria para casa e para encurtar caminho cortava a curva por dentro pensando que ele não me apanhava. Apanhava sempre com o cinto.

Fugi várias vezes para casa dos meus pais. Para encurtar caminho, porque a estrada dava muitas curtas, seguia pelas veredas dos montes. Voltavam a levar-me lá.

Certo dia já o sol se estava a por no horizonte e eu a chegar topo do último monte de onde se via já o Casalinho. Vejo uns joelhos no meio das moitas, mesmo ao lado da vereda. Alguém estava ali deitado. Paro. Pensei: o que fazer? Já estava longe demais para voltar para trás. Já via as casas do Casalinho. Seguir? E se ele acorda? Veem-me à memória as descrições dos lobisomens que se espojavam nas noites de lua cheia nos cruzamentos dos caminhos.

Segui, pé ante pé, sem fazer barulho. Passei por ele sem o olhar e corri… corri… até cair extenuado à porta de casa. Nem consegui explicar o que se passou. Desta vez não fui levado de volta.

Passei a ir com o meu pai para as obras, sempre que ele andava por perto.

Arco.jpg

Então não é que vou encontrar em 2017, à venda numa loja chinesa em Ponta Delgada, um aro de brincar, em ferro, precisamente igual ao que havia há mais de 50 anos!

Estive quase para o comprar.

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publicado às 10:26

Comprar o céu ainda neste mundo

por António Tavares, em 27.02.17

Comprar o céu ainda neste mundo  

As pessoas em Cardigos (como em qualquer aldeia portuguesa) viviam a vida da igreja intensamente e tinham por missão comprar um lugar no céu, ainda neste mundo.

A família Tavares de Cardigos era uma das famílias mais rica.

Um Tavares era o presidente da Junta. Tinha sempre à porta um dos poucos automóveis que havia na vila, um Citroen.

Outro era o Regedor. Era o que controlava as licenças de uso de isqueiro. Quando aparecia alguém com um isqueiro mandavam-no logo guardar, pois podia andar por perto o senhor regedor.

O sr José Tavares era dono do lagar de azeite e da maior mercearia que vendia desde panos a alfaias agrícolas, sabão, azeite e manteiga ao quilo. Consta-se que guardava o dinheiro (moedas) em arcas de salgar a carne de porco. Tinha várias cheias. E de vez em quando gostava de contar a sua fortuna. Enchia uma caneca de moedas e contava o seu valor. Depois era só passar de uma arca para outra e ir contando as canecas.

A moagem das azeitonas era um dos nossos maiores acontecimentos anuais. Iam-se apanhando as azeitonas para uma tulha de cimento enterrada no chão à entrada do casalinho. No dia aprazado lá ia-mos nós com toda a azeitona metida em sacas de serapilheira, em cima da carroça, para o lagar. Dava imenso gozo ver todas aquelas engrenagens, prensas, fogueira, azeite a escorrer, provar um pedaço de broa molhado no azeite novo. Era mesmo uma festa. Na altura de medir o azeite era 10 litros para nós, 1 para o lagareiro. O dono do lagar ficava com 10 por cento do azeite. Era o que ele depois vendia. Trazíamos o azeite e o bagaço (restos de azeitonas moídas) que servia ir adicionando na ração dos porcos.

Mas então como é que o sr José queria comprar o céu? Simplesmente fazendo em vida um lote de alminhas (já não me lembro de quantas eram) espalhadas por vários cruzamentos de caminhos da freguesia. Combinou-as com o meu pai para ele as ir fazendo à medida que pudesse. Em tijolo, uma cruz em cima, um nicho com azulejos de Nossa Senhora. Cada vez que fazia uma ele ia receber. Ainda me lembro de ele ter construído umas quantas. Uma ainda está ao lado da escola de Cardigos.

Um irmão era dono da serração de madeiras. Tinha camiões. Fui num desses camiões que fiz a minha primeira viagem a Lisboa para me ir apresentar no meu primeiro emprego. Também tinha uma fábrica de velas de cera. E quando havia festas na Vila o meu pai pedia muitas vezes para que um motorista dele nos fosse lavar todos ao Casalinho em cima da camioneta, já noite alta depois do fogo preso.

Em Cardigos havia muita gente a dedicar-se à apicultura e era nas fábricas de velas que essa gente vinha vender a cera.

Havia uma outra irmã desses Tavares de que já não me recordo o nome (talvez Natividade). Sempre a conheci viúva, a viver com a criada (D Alice). Esta senhora dava trabalho ao meu pai. E como sabia que eu andava a estudar no seminário disse ao meu pai que passava a ser minha madrinha e me pagava os estudos. Queria comprar o céu sendo madrinha de um padre.

E aos domingos queria por força que eu fosse almoçar lá a casa. Não gostava nada mas os meus pais insistiam e eu ia. Não gostava por causa do cheiro que a casa tinha. Não me parecia o cheiro normal de uma casa normal. Pelo menos não era o cheiro da nossa casa. Mas também eu nunca entrei verdadeiramente na casa em si. Entrava pelas escadas de serviço e almoçava na cozinha ao pé da criada.

Era latifundiária, mas as terras só por si não geram dinheiro. Um belo dia vendeu tudo, foi com a criada para Fátima, para estar mais perto da porta do céu. Comprou uma casinha pequena mesmo atrás do seminário onde eu estava. Levou lá o meu pai uns dias para fazer obras e por a casa ao seu jeito. A parte de baixo era dela e o sótão ficou para a criada.

Para se entreter e ir ganhando algum dinheiro para o dia-a-dia comprou uma loja de vender santinhos. Já depois de casado, sempre que íamos a Fátima passava por lá para a visitar. Mais tarde passamos a ver só a criada. Na última vez já a criada estava num lar de freiras e a loja era de outras pessoas.

A casa velhinha ainda lá estava, muito abandonada.

 

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publicado às 11:53

Casalinho

por António Tavares, em 01.02.17

Casalinho

O Casalinho é uma pequena aldeia da freguesia de Cardigos.

Hoje praticamente desabitada, tinha na minha meninice cerca de 8 a 9 famílias repartidas por 3 núcleos: o do cimo da aldeia, o do meio e o do fundo.

Cada núcleo juntava famílias com ligações estreitas e familiares entre si, que quase viviam em comunidade.

O apelido dos dois primeiros núcleos já não me lembro. Os de baixo eram os Tavares.

As ligações dentro de cada grupo eram tão fortes que partilhavam determinados bens como o forno do pão por exemplo.

Uma única rua ligava o cimo e o fundo da aldeia.

Os Tavares ligavam-se bem com os do cimo da aldeia, mas sempre houve uma animosidade com o núcleo do meio que nunca entendi.

O meu pai proibia-nos por exemplo de passar pela rua principal para não atravessar a zona do meio. Para irmos ao nosso quintal que ficava no cimo da aldeia seguíamos sempre por carreiros que ladeavam a aldeia por trás das casas. Mesmo com a carroça da mula seguíamos por esses carreiros. De tal modo que certa vez, era a mula ainda nova, difícil de ser domada, arrastou a carroça para o lado, uma roda subiu um muro e virou-se de rodas para o ar. Só a Lúcia vinha em cima da carroça. Felizmente não passou de uns simples arranhões.

O certo é que todos os terrenos em volta do Casalinho eram propriedade das famílias dos Tavares e das famílias do núcleo de cima. As terras das famílias do meio eram todas muito longe da povoação.

Curiosamente, estava o Bruno para nascer na clínica de São Miguel em Lisboa, quando nos apareceu no quarto uma senhora que me reconheceu e eu reconheci como sendo a Maria das Neves que pertencia ao núcleo familiar do meio. Nunca nos tínhamos falado. Era empregada da clínica e até nos emprestou uma televisão para a Fernanda ter no quarto. E levava-lhe fruta. Ironias do destino.

Não havia luz elétrica, nem casas de banho e nem água canalizada.

A luz era de candeeiros a petróleo e de lanternas de azeite. A água vinha do poço a que chamávamos fonte, que ficava a meio da encosta. Todos os dias tínhamos que ir lá várias vezes buscar água em bilhas de barro. Em casa despejávamos as bilhas para os 2 cântaros na cantareira. Tínhamos que repetir a ida há fonte até os cântaros estarem cheios. A casa de banho para as necessidades era nos pinhais atrás das casas. Quando conseguia-mos um pedaço de papel ou de jornal era uma alegria. Porque normalmente o papel higiénico era uma pedra. Há noite tínhamos bacios nos quartos. De manhã ia-mos despeja-los aos pinheiros. Lavar a cara era em bacias na rua, mesmo à porta de casa. Nas manhãs de inverno tínhamos que tirar primeiro o gelo que se formara de noite.

Mal o dia nascia abria-mos a porta do galinheiro e as galinhas iam todas de enfiada rua fora para os pinhais comer insetos. Quando as chamávamos elas vinham a correr para comer a ração feita de couves migadas, farelos e ossos esmigalhados. Depois seguiam novamente para os pinhais. De vez em quando alguém tinha que dar por lá uma volta para espantar possíveis raposas.

Mal o sol baixava no horizonte era vê-las em fila a caminho da aldeia, a entrarem nas respetivas capoeiras e a pularem para o poleiro.

Antes de se fechar a porta da capoeira, para evitar as raposas de noite, eram contadas. E de vez em quando lá vinha a mulher do tio Zé:

- Ó ti Delfina, veja lá se não está por aí a minha pedrês?

Casalinho1.jpg

O meu pai à entrada do Casalinho, o Tio Zé e a mulher à porta de casa. O meu pai e a minha mãe na carroça da mula.

Casalinho2.jpg

 O burro do ti Zé e a capela do casalinho.

Casalinho3.jpg

 Esta é uma foto de parte da nossa casa. A mãe na porta com 3 das filhas.

Os homens do casalinho.jpg

Os homens do Casalinho: Joaquim Nunes do núcleo cimeiro e as 3 famílias no núcleo fundeiro: Ti Zé Maria (meu pai), Ti Zé Tavares, o seu irmão Tio Virgílio (meu padrinho) com o filho Carlos ao lado. 

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publicado às 14:38


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