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Produzir o que comer

por António Tavares, em 12.04.17

Produzir o que comer

Só se vendia pão em Cardigos. Daquele pão branco, fino e fofo. Papo-secos e pão de quilo. A D Maria, nossa vizinha do lado, gente fina, viúva e mãe da D Alcina, professora primária na Concavada, só comia desse pão. Um de nós ia a Cardigos todos os dias comprar um quilo de pão.

Cada pão pesava sempre menos de 1 quilo. Então o padeiro cortava uma fatia de outro para fazer o quilo certo. Era o contrapeso. Eu oferecia-me sempre para lá ir porque ela dava-me sempre o contrapeso.

Quando a D Alice e o marido vinham passar alguns dias de férias ao Casalinho traziam sempre um saco cheio de papo-secos que distribuíam por nós. Era como se fosse uma guloseima.

O Manel era um perito em apanhar passarinhos. Normalmente durante o verão. Tínhamos algumas centenas de armadilhas de arame (nós chamávamos-lhe costelas). Arranjávamos uma beterraba bem grande, escavávamos por dentro para a fazer oca e arranjamos-lhe uma tampa. Atávamos-lhe um cordel para poder levar ao ombro. Escavávamos os ninhos de uma determinada formiga grande, apanhávamos as formigas de asa e enchíamos a beterraba delas. Elas mantinham-se bem lá dentro por estar fresco e porque iam comendo a beterraba.

Cada formiga de asa era montada numa armadilha de modo a que não se soltasse e que pudesse bater livremente as asas.

Saíamos aos domingos ainda de noite para montar as armadilhas. Tinham que estar montadas antes de o sol nascer e para nos anteciparmos a que outros ocupassem a melhor zona. Havia um acordo tácito: quem chegasse e topasse que na zona já havia armadilhas, seguia para outra zona.

Ao nascer do sol os pássaros saiam para comer, eram atraídos pelo bater das asas da formiga e eram apanhados pelas armadilhas.

Vínhamos a casa dormir um pouco.

Cerca das 11 horas era altura de fazer o mesmo percurso a apanhar as armadilhas e os pássaros presos. O Manel tinha dias de apanhar mais de 100. Normalmente apanhávamos galegos, piscos e felosas. Estes 2 últimos eram os mais saborosos por serem mais gordinhos. Os piscos comiam figos e bagas, as felosas comiam só bagas. Os galegos viviam nos pinhais e comiam insetos. Normalmente eram mais magros. Por vezes apanhávamos carriças e megengras. Estes eram muito pequenos e eram deitados fora. Às vezes as armadilhas desapareciam. Tínhamos que procurar nas redondezas. Quando eles ficavam presos apenas pelas patas arrastavam-nas. A alegria maior era quando ficavam presos pássaros maiores: melros, gaios e até rolas. Mesmos presos conseguiam arrastar as armadilhas para bem longe. Estes normalmente ainda estavam vivos. Tínhamos que lhe apertar o bico até que morressem.

Durante a tarde íamos depená-los. A mãe fitava-os e era um petisco.

Mas quando lá estava a D Alcina de férias eles compravam-nos todos (já depenados) por 5 escudos cada um. Ficávamos sem o petisco.

Quando o Manel deixou de montar as armadilhas comecei eu. Tentei aprender com ele mas não consegui. Apanhava sempre só 1 ou 2. Às vezes ainda os depenava e ia oferecer à D Alcina apenas 1 pássaro. Ela por vergonha não dizia que não e dava-me os 5 escudos.

Semeávamos milho nas hortas onde havia água. Antes de termos o motor para tirar a água dos poços tínhamos que utilizar as picotas. Um instrumento feito com 2 paus. Um pau grande suspenso no ar por outro colocado a meio. Numa das pontas do pau grande estavam presas pedras a fazer peso. Na outra ponta estava uma vara comprida da qual pendia um balde de lata. Tínhamos que fazer força para fazer descer o balde até água. Depois de cheio o peso das pedras fazia-o subir.

Depois a água corria por um rego e era encaminhada cavando com um sacho para as diferentes leiras do milho.

Normalmente o milho era cultivado na horta das macieiras por ser a que tinha melhor terra e mais água.

A mãe ficava em casa, o pai ia trabalhar e nós íamos regar o milho. Certo dia o Manel chamou pelo Mário. Ninguém o tinha visto. Não sabíamos onde estava. Quando nos abeiramos no poço eu tinha caído lá para dentro. Tinha vindo acima e conseguiu agarrar-se às pedras da parede. Estava tão assustado que não conseguia dizer nada.

- Não te mexas. Já vamos tirar-te daí

Mas a água estava uns 2 ou 3 metros abaixo. Lá conseguimos agarrar-nos uns aos outros e o Manel foi descendo pela parede até pegar na mão do Mário e puxá-lo para fora.

Éramos todos miúdos.

Tínhamos hortas dispersas por vários sítios: Cardosa, Horta do Fouto, Cabril, Covão da Pouchana, Covão do Rocinho, Pereiro e mais algumas.

No verão todas tinham que ser regadas pelo mesmo processo. Quando não era através de leiras era com um instrumento da madeira que tinha na ponta uma espécie de bacia. A água era despejada da picota, corria pelo rego para um buraco largo no chão e com esse instrumento era atirada para cima das hortaliças.

A rega tinha que se repetir de 3 em 3 sóis. Isto é, se uma horta era regada segunda-feira de manhã, tinha que voltar a ser regada na quarta-feira de manhã. Já tinha apanhado o sol da tarde de segunda, o sol da manhã de terça e o sol da tarde de terça.

Mais tarde o meu pai comprou uma moto-bomba a petróleo. Aí nós fazíamos o percurso entre as hortas na carroça: tínhamos que levar o motor, as mangueiras e todos os instrumentos necessários.

No regresso sempre se traziam hortaliças, frutas, lenha e sacas de pinhas.

Semeávamos também trigo e centeio.

Os cereais eram levados para a eira. O milho era descamisado à mão. Depois todos os cereais eram malhados com o mangual (nós chamávamos-lhe moueira): instrumento de madeira feito com 2 paus de diferentes tamanhos unidos por 2 ligações de couro. O maior era onde se pegava para bater com o mais pequeno no cereal. O mais pequeno era mais grosso, pesado e mais rijo. Era o que batia no ceral e por isso ter que ser mais duro.

Para ajudar até a mula era passeada largas horas por cima do cereal estendido na eira. Ajudava com as patas a debulhar o trigo.

Quando o meu pai passou a tratar a quinta da D Natividade passou a produzir muito mais milho. Tínhamos a nora puxada pela mula. Tínhamos muito mais água e era mais fácil o seu cultivo. Passávamos um dia inteiro a descamisar o milho e não conseguíamos levá-lo para casa no mesmo dia. Dormíamos em cima do milho enrolados em cobertores para não o deixarmos roubar.

Mais tarde passaram a percorrer as aldeias debulhadoras mecânicas que vinham puxadas com tratores para debulhar o trigo e o centeio. Era um dia de festa porque toda a aldeia se reunia para ajudar. As pessoas iam ceifando e juntando cada família na sua meda, junto da eira. No dia combinado nós íamos esperar a debulhadora à estrada. Porque o caminho daí até à eira era de terra, esburacado, com altos e baixo e nós adorávamos ver as manobras que o trator fazia para levar aquela maquineta tão grande até à eira.

Num dia de trabalho todo os cereais eram todos debulhados. O trator voltava a levar a debulhadora para a aldeia seguinte e o dono dela, numa carrinha, levava a paga: os sacos da maquia. 10 alqueires para o dono do trigo, 1 alqueire para o dono da máquina.

Uma vez numa aldeia próxima, estava já todo o cereal arrumado na eira à espera da debulhadora, aconteceu um incêndio. Toda a aldeia perdeu o pão para esse ano. Moveram-se influências e vieram cereais de ajudas, dizia-se que do estrangeiro. Sei que as pessoas se queixavam que o pão era diferente, que não tinha o mesmo sabor.

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publicado às 12:43


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