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EN2 e a Graça era uma gracinha!

por António Tavares, em 03.05.17

Estrada Nacional 2 e

A Graça era uma gracinha!

A história da Estrada Nacional número 2 perde-se no tempo. Teve origem nos diversos trilhos romanos que foram modernizando os ancestrais caminhos rurais. Alguns troços da actual EN2 ainda coincidem com essas estradas romanas.

Mas o plano do Estado Novo, elaborado a partir dos anos de 1930, incluía uma estrada de Faro a Chaves pelo interior do País. O plano juntava antigas estradas e novas ligações.

O troço mais conhecido é o que atravessa a serra algarvia de Faro a Almodôvar. Porque foi feito de novo e ainda mantem os traços daquele tempo. E naquele tempo havia, de tantos em tantos quilómetros, as casas dos cantoneiros. Cada grupo deles tinha por missão manter um centro número de quilómetros em bom estado: limpavam, cortavam o mato, arranjavam as bermas, faziam pequenos remendos.

Essas casas tinham quartos, sala, cozinha, um pequeno terraço e churrasqueira. Eram de arquitectura simples e típica do estado novo. Estão todas ao abandono e para muitas há planos de recuperação e colocação ao serviço doturismo. Fossemos nós um país rico… Este troço foi mesmo classificado como de interesse público. Existem associações (incluindo de municípios) que querem levar por diante estes planos.

Vem isto a propósito do percurso desta estrada em território de Cardigos. Nesses longínquos anos 30 Cardigos era uma vila com algum poder, mesmo político e fizeram-se várias incursões a Lisboa para forçar que o seu traçado atravessasse mesmo a vila. Andava eu na escola primária e ainda se apontavam a dedo os prédios marcados para serem derrubados para ela passar. Mas Vila de Rei ainda era mais importante tinha o Centro Geodésico de Portugal, na Serra da Melriça. Ora se a EN2 era para atravessar Portugal de norte a sul, pelo centro do país, tinha que passar por ali. E hoje passa mesmo. Sobe mesmo a serra e passa a poucos metros do ponto mais alto. O picoto da Melriça.

Para calar o pessoal de Cardigos foi-lhes prometido fazer depois uma estrada de igual perfil a ligar a EN2 de Vila de Rei a Cardigos. Foi começada. Lembro-me dela desde que fui com o meu pai, de carroça, pela primeira vez, trocar os presuntos por mantas de toucinho ao Vale da Urra. Piso nunca terminado, rugoso, cheio de buracos até para uma carroça. Terminava abruptamente contra uma encosta, logo depois do cruzamento para vale da Urra, depois de cruzar a ribeira da Chaveira e antes da ribeira da Isna e de São João do Peso.

Foi finalmente acabado já depois da revolução. Mas em vez de ir ligar a Vila de Rei foi prolongada mais para cima e vai desembocar perto da Vila da Sertã. Este troço passou a integrar a EN244 que terminava em Cardigos e que assim foi prolongada até à Sertã.

Entre os 15 e os 17 anos, durante as férias de verão, passei a ser o ajudante do padre na missa. Eu até andava a estudar para ser padre. Ia aprendendo. Uma espécie de sacristão. Vinha cedo abrir a Igreja e tocar o sino ao nascer do sol.

Ajudava na missa. E reparava na Maria da Graça. A Maria da Graça era uma gracinha! Bonitinha, cabelo negro escorrido. Foi o meu primeiro amor platónico. Mais nova que eu, teria uns 12 anos. Na missa, ao segurar a bandeja que se colocava debaixo do queixo na altura da comunhão, tocava-lhe com a bandeja no queixo. Não sei se ela alguma vez reparou nisso, ou não. Aos domingos seguia-a no meio da população sem ela dar por isso. Pecava em sonhos. Pecados que nem sabia como eram e daqueles que nem ao padre confessava.

A Graça era da Roda. Tinha pelo menos mais 2 irmãs mais novas. Estudava em Castelo Branco, como o Mário. Nas férias grandes, eu passava as tardes de domingo com os rapazes e raparigas da Roda. A Graça fazia parte do grupo. Divertíamo-nos em passeios pelo campo. Íamos comer fruta à horta de uns e de outros. Havia sempre alguém que tocava gaita-de-beiços. Fazíamos bailes na eira. Chegava-mos a ir tomar banho a tanques de regar as hortas. Eu apenas olhava para a Maria da Graça. E sonhava em silêncio. Eu até era quase padre.

Depois de vir para Lisboa pedi ao Mário que me desse a morada dela. Escrevi-lhe algumas cartas. Ela respondeu-me durante uns tempos. Chegou a mandar-me uma fotografia. Dizia-lhe que gostava de estar com ela quando fosse a Cardigos, para conversarmos. Respondia a dizer que sim.

O problema é que Lisboa, naquele tempo, era muito longe. E trabalhava-se no sábado de manhã. Mesmo quando se deixou de trabalhar aos sábados, apanhar todos os transportes para Cardigos, era para chegar sábado às 14 horas. E no domingo tinha que apanhar a carreira das 2 da tarde.

Esperava por ela aos domingos de manhã na praça para a ver. Ela vinha para a missa das 11. Passava na praça acompanhada da família e fingia que não me via. Ou não me via mesmo.

E assim acabou o meu primeiro amor platónico…

Antes de partir para Moçambique ainda insisti. Queria que fosse minha Madrinha de Guerra. Que me escrevesse.

Não consegui.

Ainda a vi uma vez a subir as escadas do metro nos restauradores…

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publicado às 19:47

Terrorista do daesh

por António Tavares, em 28.04.17

Terrorista do daesh

A Horta do Fouto era uma terra agrícola que ficava na encosta do Vergancinho, passando o Cabril, para o lado da Chaveira. Era terra boa mas soalheira, quer dizer com pouca água. E no verão o poço rapidamente secava. O meu pai entendeu que devia fazê-lo mais fundo. E fez. Mas reparou que a água não nascia no fundo do poço mas na parede lateral do lado da encosta. Pensou fazer uma mina no fundo do poço, no sentido da encosta.

Para fazer a mina precisava de dinamite. Abria um buraco na rocha, metia o explosivo, acendia o rastilho e fugíamos para longe. Mas o limite da propriedade era poucos metros acima. Ele temia ultrapassá-lo e que o dono do restolho da parte de cima descobrisse. E cada vez que fazia rebentamentos fugíamos e esperávamos umas horas. Não fosse a GNR andar por perto, ouvir os rebentamentos e viesse para descobrir se tínhamos ou não licença. Claro que não tínhamos.

Mas de onde vinham os explosivos? Da Sertã. E quem os ia buscar? Eu. Tinha 12 ou 13 anos. O meu pai combinava com o vendedor da Sertã. Eu ia na carreira de Cardigos a S. João do Peso. Aí apanhava outra para a Sertã. Depois regressava pelo mesmo caminho. O meu pai fazia-me o percurso todo mentalmente.

- Chegas lá, perguntas onde fica a casa do Sr X. Vais ao longo do rio, passas a ponte e a casa fica do outro lado do rio, logo em frente. Ele entrega-te 2 sacos e tu dás-lhe este dinheiro. O saco pequeno metes no bolso de dentro do casaco. Nunca o tiras de lá. O saco maior trazes na mão. Depois voltas pelo mesmo caminho, não te demoras porque a carreira de volta é às x horas. Nunca aproximes um saco do outro. Na carreira vais para o banco do fundo. Colocas o saco maior debaixo do banco e tapas com os pés.

O que tinha o saco maior? Barras de dinamite e cordão detonante. O que tinha o saco mais pequeno? Os detonadores. E aí vinha eu, qual terrorista do daesh. Mas cumpri na risca o combinado. Tinha 12/13 anos. Ainda levava umas sandes para a viagem. Porque durava quase o dia todo.

Para lá da Horta do Fouto havia toda a encosta norte do Vergancinho, cheia de matos e pinhais. E lobos. Logo da parte de cima havia um restolho que ia até alto do monte, que raramente era cultivado de trigo ou centeio. Ficava vários anos de pousio. Por isso tinha muita erva. Enquanto andávamos na horta as cabras subiam, monte acima, a pastar. Certo dia começou toda a gente a gritar e as cabras a fugir. Veio monte abaixo um lobo, abocanhou um cabrito pelo pescoço e desapareceu.

Tinha eu uns 4 ou 5 anos e a minha mãe punha a cesta do Mário (ainda bebé) debaixo da cerejeira e manda-me guardá-la.

- Daqui vês a horta e as cabras. Tomas conta do teu irmão. Vai olhando e vê se vês algum lobo que venha para as cabras ou para o teu irmão.

Naquele dia não vi. Devia estar a comer cerejas com pão sentado num dos ramos da cerejeira. Era o que mais gostava de fazer.

Quando ia guardar as cabras sozinho gostava muito de ir para esta horta. Havia cerejas e figos, quando era o tempo deles. Havia marmelos e maçãs. E havia lameiros onde as cabras ostavam de pastar.

Certo dia uma estava prenha. Quando se começou afazer escuro juntei-as todas mas essa não apareceu. Fui-me embora com as outras. À noite o meu pai deu pela falta pela.

- Não viste onde se meteu? Está-se mesmo a ver que se escondeu para parir e agora, por lá perdida, vai ser pasto dos lobos. Vamos lá!

Fomos todos de noite com candeias procurá-la. Lá estava na Horta do Fouto mas muito escondida no meio no mato, com o cabrito ao lado. O meu pai trouxe o cabrito às costas.

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publicado às 20:52


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