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Para que não se esqueça ... Para que as minhas memórias não se percam para sempre e simplesmente porque me falta escrever um livro ....
O galo do carnaval e a matança do porco
Na escola de Cardigos era usual os alunos da 4ª classe oferecerem, pelo Carnaval, um galo vivo à professora em sinal de agradecimento. Na minha quarta classe coube-me a mim ser o organizador.
O objectivo era percorrer as aldeias, escolher o galo mais vistoso e mais bonito e depois convencer a sua dona a vendê-lo. O que nem sempre era fácil. Descobrimos um lindo na Roda. A senhora compreendeu a nossa situação e lá fez o preço que entendeu.
Competia-me a mim ir recolhendo de cada um o dinheiro que cada um conseguia até ter o valor total.
No dia combinado fomos todos nós buscar o galo. Preso pelas patas e pelas asas, metido dentro de um açafate de verga, todo engalanado, lá o fomos entregar à professora.
Também era na quarta classe que a professora arranjava normalmente um passeio, em género de viagem de finalistas. Nem todos podiam pagar e não iam. A professora insistiu com o meu pai: que eu era bom aluno, que ia continuar a estudar. E lá fui.
De carreira, um dia inteiro até bem de noite. Fátima, Batalha, Alcobaça, Nazaré. Foi a minha primeira vez a ver o mar. Na praia, com um copo na mão, tentava a todo o custo enchê-lo de água do mar. Corria para as ondas mas logo que elas se aproximavam eu recuava com medo. Quando ia enterrar o copo na água só apanhava areia. Até que a professora disse:
- Dá cá.
E encheu-me o copo de água. Tinha aprendido que era salgada. Provei e era mesmo.
As carreiras que serviam Cardigos eram as do Claras com sede em Torres Novas. As que chegavam à noite dormiam em Cardigos e partiam de lá às 7 horas da manhã. Outras passavam por ali e iam dormir às Corgas (perto de Proença-a-Nova, porque o motorista era de lá). Nas manhãs húmidas e frias de inverno a carreira por vezes não pegava. O motorista já tinha o cuidado de a deixar numa descida para ele a deixar embalar e pegar em andamento.
Uma vez, ia eu para o seminário de Fátima e o motorista não conseguiu, mesmo descendo toda encosta até para lá do Azinhal (cerca de 4 quilómetros) que ela pegasse. Ali começava a subida. Então mandou toda a gente sair. Aquilo podia explodir. Abriu a capot do motor, abriu o carburador, pôs lá para dentro uma substância qualquer e aquilo pegou mesmo.
A matança do porco no Casalinho era um dia de festa. Era marcado o dia com antecedência para que nesse dia toda a gente pudesse estar disponível. Nós matávamos 2 porcos normalmente.
Uns dias antes começavam os preparativos para que cada família pudesse ter tudo disponível, carquejas secas para o chamuscar, facas de vários tipos, alguidares, tripas secas, etc.
Começava-se cedo no cimo da aldeia. Deitado numa mesa própria o porco era morto com uma facada directa ao coração. Só fazia isso quem sabia. O sangue era aparado para um alguidar.
Punha-se o porco no chão e aquela família ficava a chamuscá-lo. Com uma faca afiada fazia-se-lhe depois a barba bem feita para não ficarem pelos.
Enquanto isso os homens seguiam com a mesa para a família seguinte e assim até ao fundo da aldeia.
Morto o último voltava-se a levar a mesa para o cimo da aldeia. Voltava o porco para cima da mesa. Patas para o ar. Era aberto de alto abaixo. Esventrado. As tripas para um alguidar, as miudezas para outro. Depois de limpo era carregado pelos homens para a “loja”. Nós chamávamos loja à espécie de arrecadação onde se guardava um pouco de tudo. Pendurado pelas patas traseiras, ficava a arrefecer 1 ou 2 dias.
A guerra entre nós era para saber quem comia a primeira febra espetada num pau e grelhada nas brasas de chamuscar o porco.
Antes do almoço as mulheres carregavam as tripas para serem lavadas com muito limão no ribeiro do vergancinho. Viradas e reviradas, esfregadas e bem lavadas. Era para os enchidos. E mesmo assim não chegavam. Tínhamos que comprar tripas secas.
À noite começava-se a cortar as primeiras carnes para os enchidos.
No dia seguinte ou 2 dias depois o porco era desmanchado. Todas as peças separadas. As aparas das carnes iam para os enchidos, separadas consoante os tipos de enchido: morcelas, farinheiras, cacholeiras, chouriços, paios, etc. O resto da carne era salgada na salgadeira para comer todo o ano. As pás das patas da frente eram curtidas e salgadas como se fossem presuntos. Para nós era mesmo presento.
As patas de trás ia o meu pai na carroça trocá-las por mantas de toucinho ao Vale da Urra, já perto de Vila de Rei. Uns 6 ou 7 quilómetros. Cada presunto valia 2 mantas de toucinho. Ficávamos com muito toucinho, gordura que alimentava todas as refeições durante o ano. Mais uma vez eu tinha que ir com ele. Fui várias vezes com ele ao Vale da Urra na carroça.
Ainda hoje Mação é o concelho autodenominado capital do presunto. É neste concelho que é produzida a maioria do presunto que se consome em Portugal. Aminha mãe costumava fazer um conjunto de chouriços pequenos, para dar um a cada um de nós. Era uma ansiedade a espera para que eles ficassem curados.
Depois no início de Janeiro, aos domingos, vinha um senhor a Cardigos com uma camioneta cheia de porcos pequenos para vender. Lá vínhamos nós depois com eles presos com uma corda estrada fora, no domingo à noite.
Papa Paulo VI e o pijama sujo
Enquanto estava no seminário de Fátima tive conhecimento que o Mário tinha seguido as minhas pisadas e tinha ido para o seminário de Poiares. Mas o internamento no seminário também tinha os seus custos. Não fazia mal: a D Natividade ofereceu-se para ajudar também nas despesas do Mário:
- Já que sou madrinha de um futuro padre, posso ser madrinha de dois.
Mas a sua irrequietude levou-o a deixar o seminário cedo. Conseguiu que o pai o deixasse ir estudar para o Liceu de Castelo Branco. Foi morar para casa de pessoas da família da minha mãe.
A vida no seminário de Fátima deixou-me poucas recordações, mesmo tendo feito lá a transição da juventude (15 ao 17 anos). Cedo me apercebi que não era aquilo que queria. Apercebi-me que os estudos do seminário não eram reconhecidos oficialmente. Logo se me visse embora sem mais nem menos, tinha perdido todo o tempo que lá tinha passado.
Solução? Aguentar até fazer o 2º ciclo (antigo 5º ano) e convencer os padres a deixarem-me ir a Leiria fazer os exames oficiais no Liceu. Eles nunca foram pessoas de cortar os pés a ninguém e tal como eu havia mais rapazes nas mesmas condições.
Os padres levavam-nos em grupos. Lembro-me que fui muitas vezes num DKW de 2 tempos.
Mas não podíamos fazer os exames do 2º ciclo sem fazer antes os do 1º ciclo. Como só me lembrei disto enquanto decorriam as aulas do 5º ano, se fizesse os exames de cada ciclo em anos separados, perdia um ano.
Solução? Pedir oficialmente para fazer os exames dos 2 ciclos no mesmo ano. Fizemos em Junho os exames do 1º ciclo e em Julho os do 2º ciclo, sendo que as notas deste ficavam dependentes da aprovação do primeiro.
1º ciclo: passei a todas as disciplinas. 2º ciclo: negativa a matemática mas aprovação na oral. Já tinha o passaporte para me ir embora.
Mas não é que a vida no seminário fosse má. Não havia pressões nem abusos. Apenas a rotina. E passeava-se muito.
De carreira fomos à Nazaré, Batalha, Alcobaça, Tocha e Mira, Lousã, Aveiro, Tomar, Figueira da Foz, etc. A pé percorremos todas as terras das redondezas. Costumávamos ir para a Serra de Aires passar as tardes mornas de verão. Havia por lá uns redis de cabras abandonados. Pequenas zonas de pinheiros muradas onde os pastores, noutros tempos, guardavam as ovelhas e as cabras.
Por ali ficávamos a ler, conversar e dormitar. Cada um escolhia um canto e acomodava-o à sua moda. Lembro-me de ter feito um muro num canto. Revesti o chão com ervas e palhas, fiz um banco. Era a minha casa. Sempre que lá voltávamos íamos acrescentando alguma coisa.
Havia na zona um buraco no chão entre 2 penedos para onde atirávamos pedras pequenas e ouvíamos elas rolarem durante largos minutos. Era uma das famosas grutas da Serra de Aire. Estas foram depois abertas ao público.
Havia muitas na zona. E um padre mais aventureiro convidou quem quisesse para ir com ele fazer uma exploração de espeleologia. Eu fui. A gruta não tinha acesso embora já tivesse sido explorada. Descia-se um primeiro poço por entre pedras escorregadias, passava-se de lado por uma zona estreita entre pedras, descia-se um segundo poço através de cordas. Daqui não passei. É que o passo seguinte era passar rastejando por uma abertura no fundo do poço, com apenas 30 ou 40 centímetro de altura. Achei que para mim já chegava.
Fomos outra vez a pé até à lagoa de Minde. É uma lagoa que enche com as chuvas de Inverno e alaga campos agrícolas, mas à medida que vem a primavera e o verão a água vai recuando sendo engolida pela serra para sair nas nascentes do rio Alviela. À medida que a água ia recuando ficavam prados de erva fofa onde íamos correr e jogar à bola. Reparamos que andava um coelho aos ziguezagues por meio das videiras. Corremos a envolve-lo e ele deixou-se apanhar. Quando o soltamos ele correu sempre a direito até chocar com um muro de pedras. Percebemos que estava cego. A parvoíce deu-nos para isso: voltar a apanhá-lo e soltá-lo virado para o muro. Tanto bateu com a cabeça que morreu.
Em grupos de 25 de cada vez fomos levados a subir a torre da basílica. Estive por 3 vezes dentro da coroa que encima a torre.
Os jogos eram uma forma de libertarmos tensões e criar empatias. Tínhamos campos de futebol, andebol e basquete. Formávamos equipas e torneios. Fizemos mesmo um torneio olímpico com várias provas de atletismo. E os melhores recebiam medalhas e subiam ao pódio. Fazíamos torneios de futebol contra equipas de outros seminários.
Mesmo sem questões de disciplina e de os padres serem acessíveis e conversadores, eu nunca senti neles amigos para poder confiar problemas de auto-estima ou de personalidade. Tive que ser eu mesmo a moldar-me a mim próprio. Sozinho.
Lembro-me uma vez de acordar todo borracho. Tinha o pijama todo sujo. Sem saber o que fazer levantei-me mais cedo sem fazer barulho, fui à casa de banho, limpei-me e tentei limpar as calças do pijama. Não consegui. Enrolei-o bem enrolado, subi as escadas do sótão e fui metê-lo num canto muito escondido mesmo junto das telhas. Lá ficou muito tempo.
Assisti em 1967 à visita do papa Paulo VI. Tal como em todos os dias 13 de Maio, também nesse fomos todos dormir para o sótão, em cima de colchões de espuma espalhados pelo chão. As nossas camaratas eram alugadas para os peregrinos dormir.
Desta vez lembrei-me das calças do pijama. Lá estavam elas amarrotadas no canto. E duras de tão secas estavam. Levei-as e consegui limpá-las porque a porcaria estava tão seca que caiu.
Em Fátima no terraço do Cálvário Hungaro, construido nos anos 60 por católicos fugidos da Hungria depois da invasão comunista da URSS de 1956. Eu, como sempre, no ponto mais alto.
O grupo de colegas de turma, num dos páteos do seminário de Fátima.
Num dos passeios ao Sítio da Nazaré.
Na lagoa de Tocha. Eu lá em cima.
Num passeio em São Jorge - campo da batalha de Aljubarrota
A minha equipa no Torneio Olímpico. Devemos ter ganho, dada a dimensão do guarda-redes.
Lá atrás o palanque das medalhas.