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Para que não se esqueça ... Para que as minhas memórias não se percam para sempre e simplesmente porque me falta escrever um livro ....
A casa de Queluz a Nônô e os óculos de cascas de laranja
Mantive-me na pensão da Rua de Stª Marta até à ida para a tropa. Entretanto o Manel também tinha vindo para Lisboa tirar um curso de Offset. Como tínhamos familiares no Ministério da Educação ele conseguiu depois lá um lugar na reprografia. A Lena e a Lúcia também tinham vindo para Lisboa para empregadas internas na casa de uma senhora da sociedade, irmã do Sr Visconde. Tinha sido o primo Manel de Moura que dera um toque ao Sr Visconde. Estiveram lá pouco tempo. A Lúcia foi para uma casa de freiras e a Lena acabou por ir trabalhar também para o Ministério da Educação e alugou uma parte de casa no Bairro Alto.
Estava na tropa em Mafra e vinha a Lisboa aos fins-de-semana. Costumava ficar com ela.
Nessa altura tinha um amigo da Roda, mais velho, que também fora seminarista, o Tonito. Ele tinha uma amiga que conhecera dos seus tempos de tropa na Amadora. Essa amiga tinha mais 2 irmãs. Eram oriundas de Elvas e moravam com os pais na Amadora. Parece que ainda eram conhecidas daquele que cantava “Ó Elvas, Ó Elvas, Badajoz à vista...". Essas raparigas eram interessantes porque a mãe era chinesa de Macau. O pai delas fora lá sargento do exército. E aquela mistura de português e chinês dei-lhes um traço característico.
Sempre que vinha a Lisboa, eu o Tonito tínhamos companhia para o fim-de-semana. Ele com a mais velha e eu com a do meio. Íamos à praia a Carcavelos e ao Estoril, percorríamos os cafés da Reboleira e Amadora, íamos dançar e beber uns copos para uma boite que abria as portas aos domingos à tarde para a malta mais nova e que ficava na Rua Filipa de Vilhena. O Tonito chegou a namorar com a mais velha. Acabou por casar com uma rapariga lá da terra. Eu tentei alguma aproximação à irmã do meio. Foi o meu segundo amor platónico. Ainda hei-de falar do primeiro. Mas sempre que lhe puxava pela conversa ela dizia que tinha um namorado que era piloto da Força Aérea. Nunca o vi. O certo é que passávamos muitos fins-de-semana juntos. Mas fiquei-me apenas pelo amor platónico pela minha chinesinha Nônô…
Quando fui para Moçambique levei o seu contacto. Ainda escrevemos algumas cartas. Nunca existiu empatia e acabou.
Quando regressei da guerra e fui estudar para o ISE estava ela a acabar o curso. Apenas nos cumprimentávamos. Depois encontrava-a regularmente na Rua da Prata. Ela vinha de comboio da Amadora e apanhava o eléctrico para o Arco do Cego. Trabalhava na Casa da Moeda.
Como eu e alguns dos meus irmãos já estávamos em Lisboa foi por sugestão do Tonito que começamos a procurar casa para alugar para todos. Um dia fui com ele a Queluz ver uma casa disponível. Levei lá a Lena e ficamos com ela. Tinha 5 assoalhadas. 2 quartos para os rapazes e 2 para as raparigas.
Atrás de nós vieram os outros todos. Até que ficaram apenas os pais em Cardigos. Eu estava na tropa. E eles lá foram arranjando emprego, a maioria deles no Ministério da Educação. O certo é que a vinda para Lisboa abriu os olhos a eles todos. A maioria acabou por estudar à noite, acabaram por tirar cursos superiores e arranjar empregos melhores.
O Mário também deu as suas voltas na vida. Foi tirar a escola primária a Canha, perto de Setúbal, a casa de familiares da parte da minha mãe. Quando vinha a casa nas férias do Natal trazia de lá laranjas. Eram as maiores laranjas que já vira. Enormes. Tão grandes eram que a minha mãe descascava-as e dava a cada um apenas um ou 2 gomos. Mesmo assim havia guerra pelas cascas. Para comer a parte interior da casca. Estas laranjas serviam para fazer óculos: eu cortava 2 lascas da casca em lados opostos. Depois cortava uma tira da casca entre as duas lascas sem a separar. Por fim tinha que meter a faca por dentro da casca e separar toda a casca do miolo. Enfiava a tira debaixo do chapéu e afastava os dois buracos para os lados, ficando um em cada olho. Era assim que eu brincava.
Depois o Mário esteve no seminário de Poiares. Tentou e não se deu bem. Acabou por ir tirar o liceu a Castelo Branco. Usava a barba grande e os cabelos enormes. Cada vez que vinha ao Casalinho havia sempre discussão com o pai. Quase chegavam por vezes a vias de facto. Ele não queria aquelas guedelhas. Ele veio depois para Lisboa tirar Medicina. Teve ligações esquerdistas. Constou-me, depois de eu vir de Moçambique, que uns dias antes do 25 de Abril alguém ligado à PIDE batera à porta da casa de Queluz a perguntar por ele.
Depois do 25 de Abril as suas ligações esquerdistas levaram-no a participar em actividades de apoio local em locais mais desprotegidos. Num bairro de barracas da Amadora participou na construção de um espaço para apoio social e escolar.
A casa de Queluz serviu para todos nós. Até para receber o pai depois de adoecer e a Mãe quando ficou viúva. Foi lá que faleceu o pai e mais tarde a mãe.
Foi para lá que fui morar quando vim de Moçambique. Foi de lá que saí para ir casar. Lá faleceu o João, vítima de um ataque epiléptico nocturno. De lá saíram os meus irmãos todos menos o Abílio e o Alberto. Quando o senhorio vendeu o andar, o Abílio comprou a parte dele e a parte do Alberto. O Alberto foi depois comprar uma para ele para os lados de Sintra.
A dada altura a minha mãe chamou os filhos todos. O Manel já tinha falecido. Veio a viúva. Havia feito lotes dos terrenos todos como ela entendeu. Escreveu os nomes em papelinhos e enrolou-os. A começar pelos mais velhos cada um tirou um papel. Para mim ficou o Covão do Rocinho e parte do Cabril, entre o estradão e o lado direito da barragem. A casa ficava para todos. Assim evitou a guerra de partilhas e faleceu em paz.
A barragem do Casalinho com água preta, fruto dos incêndios de 2003. A maior parte dela construida em terrenos dos meus pais.
Os terrenos de lá ficaram para um dos meus irmãos. Uma tira que restou do lado de cá ficou para mim.
O Covão do Rocinho: a horta e os terrenos que me calharam, ardidos em 2003.
À esquerda a Fernanda, a mãe dela (D Palmira) e os meus filhos Bruno e Tiago.