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Nameteculía

por António Tavares, em 30.04.17

Namutaqueliua

Os perto de 2 anos que passei em Nampula até nem foram maus de todos. Tinha um grupo de amigos, todos alferes, que fazíamos por passar o tempo o melhor possível. Jogávamos futebol às 5ªs feiras, à noite íamos jantar muitas vezes aos cafés e restaurantes da cidade. Aos fins-de-semana passeávamos.

Para albergar os oficiais superiores que não tinham direito a ter moradia (ou flat = apartamento) por sua conta, o exército comprou um hotel: hotel Portugal. E quando alguém se lembrou que lá para o norte, a comandar um pelotão de infantaria, estava um alferes miliciano com curso de cozinha tirado na Suíça, outro alguém ordenou:

- Ele que venha para Nampula.

E veio. Foi transferido para ser chefe de cozinha do hotel Portugal. Para além dos cozinhados que fazia para os oficiais superiores também fazia os petiscos para nós. Lagosta suada…

Certa noite, acabados de jantar espetadas, fomos passear até à Nameteculía. Um bairro de palhotas de má fama, no caminho para o aeroporto. O nome oficial é Namutequeliua. Nós chamávamos Nameteculía para ser mais fácil. Havia bares para beber cervejas, prostitutas negras, vadiagem. Íamos sempre em grupo para nos protegermos e evitar confusões.

Os soldados iam mais para se divertir e fazer a sua acção psicológica, “psico”, como dizia o Cancioneiro do Niassa (reprodução de memória):

Bem vindo checa

P’ra esta guerra

Que cá te espera

Não estejas triste

Que a guerra é linda

Só fazes cera

Vais ter saudades

De mulheres brancas

Ai que tormentos

Aqui há pretas

Mas tem cuidado

Com seus lamentos

Checa danado

Que vieste cá fazer?

Vieste p’ra me render

Vais lerpar muito

Mas com o aumento

Vais ficar rico

Dá-o às pretas

Pois assim fazes a tua “psico”

O bairro era percorrido constantemente pelos jeeps da polícia militar. Para evitar desacatos e prender os mais atrevidos. Porque eram essencialmente os militares que ocupavam as ruas para se divertir. Depois de várias cervejas havia sempre barulho. Não havia iluminação pública. Apenas as luzes das diversas palhotas e dos bares.

Nós tínhamos acabado de jantar espetadas num dos restaurantes da cidade. Eu, por piada, tinha levado comigo o espeto para recordação. Um arame afiado com cerca de 20 centímetros e uma argola na ponta. Meti o dedo médio na argola e ia girando no ar para descontrair.

Já em pleno bairro de palhotas dei por mim com aquilo na mão e pensei que alguém podia interpretar mal. Em vez de o atirar fora escondi-o ao longo do braço, debaixo da manga. E aconteceu mesmo. Não é que uma negra se abeirou de nós, agarrou-me na mão e detectou o arame. Fugiu aos gritos:

- Tem ferro… tem ferro!

Fugimos todos rapidamente para evitar confusão.

As casas das prostitutas brancas ficavam todas fora da cidade. Embora a prostituição fosse proibida, em África era tolerada. A casa mais conhecida era a da Paula. Ficava a uns 3 ou 4 quilómetros, na picada para a barragem. Uma casa “séria”. Com bar, música e espectáculos (por vezes). Havia mesmo prostitutas da Rodésia e Sul-Africanas. Só falavam inglês. Conta-se mesmo a história de capitães de companhia (milicianos) que iam à Beira ou a Nampula e contratavam 2 ou 3 prostitutas, para irem passar uns dias aos acampamentos militares, lá para o norte, para aviarem quem necessitasse. Ou o caso de um soldado que, chegado a uma destas casas, encontra alguém conhecido e diz:

- Ó tia, está aqui?

Era mesmo a sua tia.

Não havia transportes públicos. Para ir até estas casas tinha que se ir de táxi ou no carro de um amigo. Havia muitos militares que, estando na cidade, levavam o carro de cá ou compravam lá um, usado, para se divertirem.

Havia um capitão miliciano que tinha levado para lá o seu MGB/GT. Um alferes, amigo comum, pede-lho emprestado para ir passar o fim-de-semana à Ilha de Moçambique. Não chegou lá. A estrada era de terra batida, mas larga e com grandes rectas. Numa curva para lá do Monapo, espalhou-se. Lá ficou e o carro teve que ser apanhado peça a peça. Parece que o conta-quilómetros marcava 240.

Usando das facilidades que a tropa oferecia, tirei lá a carta de condução. Seguia no jeep com o meu condutor e já fora da cidade dizia-lhe.

- Para aí. Passas para aqui que agora conduzo eu.

E aprendi assim. Pelas picadas, entre as palhotas. Uma vez o condutor disse-me:

- Ó sr Alferes, olhe que o jeep não passa aí entre essas duas palhotas!

Passar passou, só que arrastou os paus do telhado de colmo que estavam baixos de mais e eu não me apercebi disso. Quando dei por ela só vi um negro deitado numa enxerga, porque o telhado tinha arrastado uma das paredes da palhota.

O Alferes que me fez o exame de condução era meu colega e amigo. Fomos de jeep. Saímos do quartel por uma porta e entrámos pela outra.

- Podes ir!

Já tinha a carta. Mas uma coisa que eu achei que foi bem feita: ter feito todos os testes psicotécnicos e de aptidão, de visão e de audição, que nem eu sabia que se faziam e que era usual fazer a todos os militares que iam tirar a carta de condução. Passei a todos.

De vez em quando pegava no jeep, mesmo aos fins-de-semana e saía por aí fora. Ía com amigos até à barragem, cheguei mesmo ai até Nacala e à Ilha de Moçambique. Corria imensos riscos. Para além de poder ter um acidente, para se sair com uma viatura militar tinha que se ter autorização e plano de viagem. E podia sempre aparecer a Polícia Militar.

Felizmente sempre correu tudo bem.

Bar barragem.jpg

Nas escadas para o bar da barragem de Nampula

De jeep.jpg

Regresso do aeroporto. Bairro da Nameteculía em frente. Os morros sempre presentes.

Na barragem.jpg

Na barragem

Nameteculia.jpg

Bairro da Nameteculía.

Picada para a Ilha.jpg

 Esrtrada de terra para a Ilha de Moçambique, logo após Monapo.

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publicado às 20:52

O galo do carnaval e a matança do porco

por António Tavares, em 29.04.17

O galo do carnaval e a matança do porco

Na escola de Cardigos era usual os alunos da 4ª classe oferecerem, pelo Carnaval, um galo vivo à professora em sinal de agradecimento. Na minha quarta classe coube-me a mim ser o organizador.

O objectivo era percorrer as aldeias, escolher o galo mais vistoso e mais bonito e depois convencer a sua dona a vendê-lo. O que nem sempre era fácil. Descobrimos um lindo na Roda. A senhora compreendeu a nossa situação e lá fez o preço que entendeu.

Competia-me a mim ir recolhendo de cada um o dinheiro que cada um conseguia até ter o valor total.

No dia combinado fomos todos nós buscar o galo. Preso pelas patas e pelas asas, metido dentro de um açafate de verga, todo engalanado, lá o fomos entregar à professora.

Também era na quarta classe que a professora arranjava normalmente um passeio, em género de viagem de finalistas. Nem todos podiam pagar e não iam. A professora insistiu com o meu pai: que eu era bom aluno, que ia continuar a estudar. E lá fui.

De carreira, um dia inteiro até bem de noite. Fátima, Batalha, Alcobaça, Nazaré. Foi a minha primeira vez a ver o mar. Na praia, com um copo na mão, tentava a todo o custo enchê-lo de água do mar. Corria para as ondas mas logo que elas se aproximavam eu recuava com medo. Quando ia enterrar o copo na água só apanhava areia. Até que a professora disse:

- Dá cá.

E encheu-me o copo de água. Tinha aprendido que era salgada. Provei e era mesmo.

As carreiras que serviam Cardigos eram as do Claras com sede em Torres Novas. As que chegavam à noite dormiam em Cardigos e partiam de lá às 7 horas da manhã. Outras passavam por ali e iam dormir às Corgas (perto de Proença-a-Nova, porque o motorista era de lá). Nas manhãs húmidas e frias de inverno a carreira por vezes não pegava. O motorista já tinha o cuidado de a deixar numa descida para ele a deixar embalar e pegar em andamento.

Uma vez, ia eu para o seminário de Fátima e o motorista não conseguiu, mesmo descendo toda encosta até para lá do Azinhal (cerca de 4 quilómetros) que ela pegasse. Ali começava a subida. Então mandou toda a gente sair. Aquilo podia explodir. Abriu a capot do motor, abriu o carburador, pôs lá para dentro uma substância qualquer e aquilo pegou mesmo.

A matança do porco no Casalinho era um dia de festa. Era marcado o dia com antecedência para que nesse dia toda a gente pudesse estar disponível. Nós matávamos 2 porcos normalmente.

Uns dias antes começavam os preparativos para que cada família pudesse ter tudo disponível, carquejas secas para o chamuscar, facas de vários tipos, alguidares, tripas secas, etc.

Começava-se cedo no cimo da aldeia. Deitado numa mesa própria o porco era morto com uma facada directa ao coração. Só fazia isso quem sabia. O sangue era aparado para um alguidar.

Punha-se o porco no chão e aquela família ficava a chamuscá-lo. Com uma faca afiada fazia-se-lhe depois a barba bem feita para não ficarem pelos.

Enquanto isso os homens seguiam com a mesa para a família seguinte e assim até ao fundo da aldeia.

Morto o último voltava-se a levar a mesa para o cimo da aldeia. Voltava o porco para cima da mesa. Patas para o ar. Era aberto de alto abaixo. Esventrado. As tripas para um alguidar, as miudezas para outro. Depois de limpo era carregado pelos homens para a “loja”. Nós chamávamos loja à espécie de arrecadação onde se guardava um pouco de tudo. Pendurado pelas patas traseiras, ficava a arrefecer 1 ou 2 dias.

A guerra entre nós era para saber quem comia a primeira febra espetada num pau e grelhada nas brasas de chamuscar o porco.

Antes do almoço as mulheres carregavam as tripas para serem lavadas com muito limão no ribeiro do vergancinho. Viradas e reviradas, esfregadas e bem lavadas. Era para os enchidos. E mesmo assim não chegavam. Tínhamos que comprar tripas secas.

À noite começava-se a cortar as primeiras carnes para os enchidos.

No dia seguinte ou 2 dias depois o porco era desmanchado. Todas as peças separadas. As aparas das carnes iam para os enchidos, separadas consoante os tipos de enchido: morcelas, farinheiras, cacholeiras, chouriços, paios, etc. O resto da carne era salgada na salgadeira para comer todo o ano. As pás das patas da frente eram curtidas e salgadas como se fossem presuntos. Para nós era mesmo presento.

As patas de trás ia o meu pai na carroça trocá-las por mantas de toucinho ao Vale da Urra, já perto de Vila de Rei. Uns 6 ou 7 quilómetros. Cada presunto valia 2 mantas de toucinho. Ficávamos com muito toucinho, gordura que alimentava todas as refeições durante o ano. Mais uma vez eu tinha que ir com ele. Fui várias vezes com ele ao Vale da Urra na carroça.

Ainda hoje Mação é o concelho autodenominado capital do presunto. É neste concelho que é produzida a maioria do presunto que se consome em Portugal. Aminha mãe costumava fazer um conjunto de chouriços pequenos, para dar um a cada um de nós. Era uma ansiedade a espera para que eles ficassem curados.

Depois no início de Janeiro, aos domingos, vinha um senhor a Cardigos com uma camioneta cheia de porcos pequenos para vender. Lá vínhamos nós depois com eles presos com uma corda estrada fora, no domingo à noite.

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publicado às 14:47

Terrorista do daesh

por António Tavares, em 28.04.17

Terrorista do daesh

A Horta do Fouto era uma terra agrícola que ficava na encosta do Vergancinho, passando o Cabril, para o lado da Chaveira. Era terra boa mas soalheira, quer dizer com pouca água. E no verão o poço rapidamente secava. O meu pai entendeu que devia fazê-lo mais fundo. E fez. Mas reparou que a água não nascia no fundo do poço mas na parede lateral do lado da encosta. Pensou fazer uma mina no fundo do poço, no sentido da encosta.

Para fazer a mina precisava de dinamite. Abria um buraco na rocha, metia o explosivo, acendia o rastilho e fugíamos para longe. Mas o limite da propriedade era poucos metros acima. Ele temia ultrapassá-lo e que o dono do restolho da parte de cima descobrisse. E cada vez que fazia rebentamentos fugíamos e esperávamos umas horas. Não fosse a GNR andar por perto, ouvir os rebentamentos e viesse para descobrir se tínhamos ou não licença. Claro que não tínhamos.

Mas de onde vinham os explosivos? Da Sertã. E quem os ia buscar? Eu. Tinha 12 ou 13 anos. O meu pai combinava com o vendedor da Sertã. Eu ia na carreira de Cardigos a S. João do Peso. Aí apanhava outra para a Sertã. Depois regressava pelo mesmo caminho. O meu pai fazia-me o percurso todo mentalmente.

- Chegas lá, perguntas onde fica a casa do Sr X. Vais ao longo do rio, passas a ponte e a casa fica do outro lado do rio, logo em frente. Ele entrega-te 2 sacos e tu dás-lhe este dinheiro. O saco pequeno metes no bolso de dentro do casaco. Nunca o tiras de lá. O saco maior trazes na mão. Depois voltas pelo mesmo caminho, não te demoras porque a carreira de volta é às x horas. Nunca aproximes um saco do outro. Na carreira vais para o banco do fundo. Colocas o saco maior debaixo do banco e tapas com os pés.

O que tinha o saco maior? Barras de dinamite e cordão detonante. O que tinha o saco mais pequeno? Os detonadores. E aí vinha eu, qual terrorista do daesh. Mas cumpri na risca o combinado. Tinha 12/13 anos. Ainda levava umas sandes para a viagem. Porque durava quase o dia todo.

Para lá da Horta do Fouto havia toda a encosta norte do Vergancinho, cheia de matos e pinhais. E lobos. Logo da parte de cima havia um restolho que ia até alto do monte, que raramente era cultivado de trigo ou centeio. Ficava vários anos de pousio. Por isso tinha muita erva. Enquanto andávamos na horta as cabras subiam, monte acima, a pastar. Certo dia começou toda a gente a gritar e as cabras a fugir. Veio monte abaixo um lobo, abocanhou um cabrito pelo pescoço e desapareceu.

Tinha eu uns 4 ou 5 anos e a minha mãe punha a cesta do Mário (ainda bebé) debaixo da cerejeira e manda-me guardá-la.

- Daqui vês a horta e as cabras. Tomas conta do teu irmão. Vai olhando e vê se vês algum lobo que venha para as cabras ou para o teu irmão.

Naquele dia não vi. Devia estar a comer cerejas com pão sentado num dos ramos da cerejeira. Era o que mais gostava de fazer.

Quando ia guardar as cabras sozinho gostava muito de ir para esta horta. Havia cerejas e figos, quando era o tempo deles. Havia marmelos e maçãs. E havia lameiros onde as cabras ostavam de pastar.

Certo dia uma estava prenha. Quando se começou afazer escuro juntei-as todas mas essa não apareceu. Fui-me embora com as outras. À noite o meu pai deu pela falta pela.

- Não viste onde se meteu? Está-se mesmo a ver que se escondeu para parir e agora, por lá perdida, vai ser pasto dos lobos. Vamos lá!

Fomos todos de noite com candeias procurá-la. Lá estava na Horta do Fouto mas muito escondida no meio no mato, com o cabrito ao lado. O meu pai trouxe o cabrito às costas.

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publicado às 20:52

A PIDE em Mafra, a neve na Serra das Meadas e a filha do chefe da estação dos comboios de Lamego

por António Tavares, em 28.04.17

A PIDE em Mafra, a neve na Serra das Meadas e a filha do chefe da estação dos comboios de Lamego

Após a morte dos cadetes a recruta passou a desenrolar-se de forma menos custosa. Exercícios mais leves uns, anulados outros. Menos castigos. Deixamos de ter medo de refilar se tal se mostrasse necessário. A EPI (Escola Prática de Infantaria) estava cheia de pides. Vigiavam qualquer movimento suspeito.

Já no final de Junho, perto do fim da recruta, foram-nos dados diversos temas para cada um de nós elaborar um texto sobre um deles à nossa escolha. Não me lembro de nenhum especial, mas era tipo: a pátria e a família, as províncias ultramarinas, os militares na promoção da sociedade… Claro que era uma armadilha!

Lembro-me de escrever sobre nenhum deles. Sobre o que me veio à cabeça, ainda no rescaldo da morte dos colegas cadetes. Chamei nomes aos militares chicos, que só queriam poder, que só sabiam explorar a miséria humana, que só queriam mandar, etc.

Onde eu me fui meter. No dia seguinte veio ter comigo o alferes e disse-me:

- Sabes o que fizeste? Vou ser teu amigo. Vou rasgar a tua dissertação. Finjo que não a li. Escreves outra com calma, sem dizer disparates e eu substituo-a.

- Não, está escrito, está escrito!

- Estás por tua conta. Ainda vais a tempo. Se não quiseres vou levar isto ao nosso comandante de companhia (Capitão Fernnades), porque isto ultrapassa as minhas competências de punição.

O Capitão Fernandes disse-me mais ou menos as mesmas coisas. Que eu tinha que ser castigado. Que passava já a soldado raso e que arruinava o resto da minha vida. Mas que também ele não podia decidir. Ia enviar o meu processo para o comandante da unidade.

Uns dias depois sou convocado para me apresentar ao Capitão Coimbra. Soube depois que era o oficial de ligação com a PIDE. As perguntas que me fez eram do género:

- És comunista?

- Não sei o que isso é.

- O teu pai ou alguns dos teus irmãos tem ligação com o Partido Comunista?

- Não sei.

- Estás tramado!

A conversa não passou muito destes temas.

Passados mais uns dias, estava eu a regressar de mais uma manhã de instrução, todo sujo e fui intimado a apresentar-me na sala oval ao comandante do quartel. Nem me deixaram lavar nem almoçar.

Nunca ali tinha entrado. Nem sabia que o quartel tinha uma sala daquelas. Estava até com receio de sujar os mármores do chão com as botas que trazia calçadas. A sala oval era a antiga sala do capítulo dos fardes. Era agora o gabinete do comandante. Uma sala enorme, mármores de várias cores no chão fazendo floreados. Mármores nas paredes, tecto em abóbada, lustres…

Atravessei a sala em direcção à grande mesa de carvalho que, junto de uma parede, servia de secretária. Fiz continência e fiquei aprumado de pé em frente àquela personagem que não conhecia. Era o segundo comandante, coronel Vaz Simões. Sem lhe dizer nada apenas me disse:

- Estás com sorte. O nosso comandante está para Lisboa. Coube-me a mim receber-te. Eu percebo-te. Tenho filhos da tua idade. Também andam lá pelas faculdades a ouvir essas ideias malucas. Mas olha: vou ser teu amigo. Guardo comigo o que escreveste. Estás aqui indicado para seguir para Lamego para as Operações Especiais, mas não vais. Vais ficar aqui comigo a tirar a especialidade de atirador. Mas fica sabendo: se nos próximos 3 meses meteres o pé na argola, apanhas pelas 2. Podes ir.

Estive quase a ajoelhar-me e beijar-lhe os pés. Para Lamego era para onde ninguém queria ir. Era longe e a instrução era altamente rigorosa. A mania que eu tinha de ser voluntarioso, o primeiro a chegar e a ser o melhor nas provas físicas, deu-me notas altas na vertente de aplicação militar. Se não fosse aquela redacção lá teria ido para a Lamego.

Juramos bandeira e nos três meses seguintes (Julho a Setembro) fiquei em Mafra. Acabada a especialidade fui promovido a Aspirante. Era o primeiro posto de Oficial Miliciano do Exército.

Fomos de férias. E recebi logo instruções para me apresentar no GACA 2 de Torres Novas no início de Outubro. Ia formar companhia para seguir para Moçambique. Enquanto iam chegando os soldados para nós formamos recebi um passaporte para me apresentar nos primeiros dias de Novembro em Lamego. Afinal sempre ia parar a Lamego. Só que agora já era oficial e era apenas por um mês. Fui fazer um tirocínio de um mês em operações especiais e manuseamento de explosivos.

E logo em Dezembro! Lembro-me de ir às 7 da manhã fazer aplicação militar para o campo de futebol com meio metro de neve e nós de calção de ginástica e de T Shirt.

Certa noite fomos fazer um percurso nocturno pela Serra das Meadas. Nevava. Visibilidade zero. Levava 3 pares de meias, 2 pares de calças, 2 camisas, e gorros, sei lá que mais. Mas ia gelado. Em fila indiana íamos seguindo os passos uns dos outros. A dada altura paramos. Sentei-me numa pedra na beira do caminho e adormeci. Sem darem por mim seguiram caminho. Mais adiante diz o que ia na frente:

- Contagem.

E começa: 1, o segundo diz: 2 e assim sucessivamente. No final:

- Falta 1. Vamos regressar pelo mesmo caminho…

Quando chegaram ao pé de mim estava tão enregelado que não me consegui por de pé. Tive que ser ajudado.

Ao menos em Lamego havia umas tascas, mesmo ao lado da messe de oficiais, onde se comiam boas sandes de presunto.

Como não podia ir até Lisboa aos fins-de semana, fiquei por ali o tempo todo. Jogávamos ao King e passeava.

Lamego é uma cidade antiga, já com alguma dimensão e poder sobre as terras vizinhas. Sede de bispado com muita influência. Foi com naturalidade que foi autorizada a construção do caminho-de-ferro da Régua para Lamego. Iniciada nos anos de 20 do século passado, acabou por morrer com a crise dos anos 30. Fizeram-se pontes e viadutos. As pontes têm uma dimensão grandiosa e bastante beleza. A ponte sobre o Douro foi convertida para o percurso automóvel nos anos 40. Ao lado desta a ponte metálica da EN2. Foi abandonada muitos anos. Recentemente foi reconvertida para ponte pedonal. A ponte sobre o rio Varosa é utilizada pelos militares de lamego para exercícios de rapel. Em linha recta não são mais que 5 ou 6 quilómetros. Pela via aberta deviam ser mais de 20, tantas eram as curvas de ir e vir pelas encostas, para superior o desnível entre as duas povoações (hoje cidades).

Um domingo fui sozinho a pé até ao Peso da Régua, cerca de 8 quilómetros, pela EN2. Na volta subi pelo percurso construído para a instalar a via-férrea. Era mais longo mas mais interessante, atravessava pontes, hortas e vinhas. Nunca chegou a levar os carris.

O maior desaforo que ainda hoje se pode lançar a um habitante de Lamego é chegar à cidade e perguntar onde mora a filha do chefe da estação. Tiverem estação mas nunca o comboio nem chefe da estação.

Passado o mês de tirocínio recebo guia de marcha para me apresentar no Quartel de Torres Novas. Fora mobilizado para Moçambique e ia formar companhia no GACA 2 (Grupo de Artilharia conta Aeronaves).

Saí de Lamego dia 17 de Dezembro de 1971. Fazia 21 anos. O passaporte dava para bilhete de primeira classe (porque era oficial) até Torres Novas. Era sexta-feira e tinha que estar em Torres-Novas na segunda-feira. Consegui na CP trocar a primeira pela segunda classe e arranjei bilhete até Queluz. Ainda consegui vir a casa passar o domingo.

Na segunda-feira seguinte recomecei a minha vida militar em Torres novas.

Messe de Lamego.jpg

A messe de oficiais de Lamego, numa foto muito antiga encontrada na net.

Pontes de Lamego.jpg

 As pontes da linha de caminho-de-ferro entre Peso da Régua e Lamego, que nunca chegou a levar carris. Esta última é usada pelos militares de Lamego para exercícios de rapel.

 

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publicado às 12:19

4 cadetes mortos em Mafra

por António Tavares, em 28.04.17

4 cadetes mortos em Mafra

Apresentei-me em Mafra num dos primeiros dias de Abril de 1971. Nunca tinha visto edifício tão imponente. Fui integrado numa companhia de instrução de cadetes, futuros oficiais milicianos. Cerca de 120 cadetes, repartidos por 4 pelotões. E havia mais 4 companhias. Ao todo eramos cerca de 500 instruendos. Comandante de Companhia: Capitão Fernandes. Do quadro. Durão!. Os comandantes dos pelotões eram Alferes do quadro, saídos da formação da Academia Militar uns meses antes. Era a segunda incorporação do ano. Havia 4 ao longo do ano: Janeiro, Abril, Julho e Outubro.

Estranhei ser um dos mais novos. Porque a maioria havia pedido adiamento para tirar cursos superiores: havia advogados, médicos, contabilistas, etc. Havia mesmo cadetes que usavam lentes tão grossas que quando os óculos lhe caíam durante a instrução, paravam. Não viam nada. Mas naquele tempo ninguém se safava da tropa.

Pensei para mim que talvez fosse melhor ser esforçado e cumprir o melhor possível. Em qualquer prova era sempre o primeiro. Apenas bloqueei no salto para o galho. Ao princípio conseguia. A dada altura bloqueei mesmo. Era o salto duma plataforma alta para um tronco colocado de pé em frente e muito perto. Quase que se tocava com a mão no galho. Mas aquele pequeno salto no vazio aterrorizava muita gente. Nunca mais fui capaz.

De especial lembro-me das longas caminhadas até à serra de Montejunto, até à Foz do Lizandro, até Torres Vedras. Algumas de noite. Por vezes os agricultores vinham reclamar que tinham destruído uma cultura de morangos ou um pomar de peras. Normalmente o quartel pagava para evitar quezílias.

Certa vez fomos de camião e deixados perto da Cadaval. Tínhamos um percurso de 3 dias traçado no mapa até um certo campo de futebol onde estariam os mesmos camiões para nos levar de volta. Circulava pela mesma zona um oficial de jeep que teríamos que evitar a todo o custo. Em teoria era o inimigo a quem não nos podíamos mostrar. Se ele nos visse disparava e nós teríamos que ripostar.

Na primeira noite ainda dormimos no campo. Na segunda noite passamos por um palheiro e o alferes disse:

- Todos lá para dentro. Vamos dormir aqui na palha e se ouvirem barulhos de noite ninguém responde.

O jeep passou diversas vezes à frente do palheiro. Fez vários disparos mas ninguém reagiu. Nessa noite dormimos num “hotel”.

Numa quinta-feira (penso que entre Maio e Junho de 1971) estava previsto treino de tiro. Estava a chover e não dava para isso. O capitão ordenou aos alferes para levarem os cadetes a fazer aplicação militar na tapada. Aí vamos nós. Botas de lona a correr, pagar 10, rebolar e dar cambalhotas à chuva.

- Em fila indiana… toca a passar para o lado de lá!

O que ia na frente desapareceu nas águas. O segundo também. O terceiro e o quarto foram em seu auxílio e também desapareceram. O alferes atirou-se à água e só não ficou lá porque o agarrámos. Ficaram 4 cadetes enterrados no lodo da lagoa que fica do lado direito da picada que segue do portão da tapada para o paiol.

Tenho pesquisado na net informação sobre este incidente. Já está muito esquecido. Na altura foi bastante camuflado. Há quem diga que foram 2, outros dizem que foram 3. Até há quem diga que havia uma corda.

O que aconteceu foi que o alferes tinha atravessado a pequena lagoa nos exercícios finais da sua formação na Academia Militar. E na altura como não chovia o nível da água era baixo. Desta vez chovia a potes e a lagoa transbordava. Só foram retirados no domingo, depois de os bombeiros esvaziarem a lagoa. Estavam enterrados debaixo de mais de 1 metro de lodo.

Nesse dia fez-se levantamento de rancho. Ninguém almoçou e ninguém jantou. Não saímos das casernas. Todos a pensar numa resposta adequada. Foi decidido que no dia seguinte (sexta-feira) formássemos na parada, todos fardados e prontos para sair, com a boina metida no passador da casaca, em sinal de luto.

Os dirigentes tiveram o bom senso de abrir as portas e deixar o pessoal sair para o de fim-de-semana. Sem passaportes nem nada. Pensaram que segunda-feira regressariam mais calmos.

E é que regressaram. Pelo menos a maioria regressou. Alguns quantos desertaram. Houve até quem levasse com eles a G3. E até quem passasse a enviá-la, peça a peça, de Paris para o quartel de Mafra.

Para além deste incidente lembro-me do soldado a quem uma bala tracejante da metralhadora acoplada ao canhão-sem-recuo lhe entrou pelo sovaco e saiu pela face. É claro que morreu. Tinha-mos ido fazer disparos para a carreira de tiro. A metralhadora serve para disparar previamente uma bala tracejante que vai indicar se o canhão está bem apontado, caso ela acerte no alvo. Ninguém se lembrou de verificar se tinha ficado alguma bala na câmara. E enquanto um soldado limpava com o escovilhão o cano do canhão, outro carregou, sem querer, no gatilho da metralhadora.

Há ainda o caso do cadete que ficou cego dum olho. Ia-mos em marcha em duas filas de arma aperreada, naqueles terrenos sem vegetação ao lado da estrada entre Mafra e a Carapinheira. A fila de um lado apontava as G3 para um lado e a outra fila apontava-as para o outro. Lá muito ao fundo num local mais elevado o alferes ia fazendo tiro de bala real para o espaço entre as e filas. Uma das balas estilhaça um seixo e um dos estilhaços esvazia-lhe um olho.

A última semana da recruta (finais de Junho) foi passada num acampamento num eucaliptal, para lá de Torres Vedras. Depois viemos a pé até Mafra. Todos sujos e rotos, no último dia só queríamos chegar ao quartel para tomarmos banho. Tivemos que esperar largas horas na zona da Paz, porque estava a chegar uma alta patente militar brasileira que vinha para nos ver desfilar na parada em frente ao quartel. Todos sujos e rotos…

E só depois do desfie é que pudemos tomar banho e ir comer alguma coisa.

Cadete em Mafra.jpg

 Eu cadete em Mafra

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publicado às 07:53

A casa de Queluz a Nônô e os óculos de cascas de laranja

por António Tavares, em 26.04.17

A casa de Queluz a Nônô e os óculos de cascas de laranja

Mantive-me na pensão da Rua de Stª Marta até à ida para a tropa. Entretanto o Manel também tinha vindo para Lisboa tirar um curso de Offset. Como tínhamos familiares no Ministério da Educação ele conseguiu depois lá um lugar na reprografia. A Lena e a Lúcia também tinham vindo para Lisboa para empregadas internas na casa de uma senhora da sociedade, irmã do Sr Visconde. Tinha sido o primo Manel de Moura que dera um toque ao Sr Visconde. Estiveram lá pouco tempo. A Lúcia foi para uma casa de freiras e a Lena acabou por ir trabalhar também para o Ministério da Educação e alugou uma parte de casa no Bairro Alto.

Estava na tropa em Mafra e vinha a Lisboa aos fins-de-semana. Costumava ficar com ela.

Nessa altura tinha um amigo da Roda, mais velho, que também fora seminarista, o Tonito. Ele tinha uma amiga que conhecera dos seus tempos de tropa na Amadora. Essa amiga tinha mais 2 irmãs. Eram oriundas de Elvas e moravam com os pais na Amadora. Parece que ainda eram conhecidas daquele que cantava “Ó Elvas, Ó Elvas, Badajoz à vista...". Essas raparigas eram interessantes porque a mãe era chinesa de Macau. O pai delas fora lá sargento do exército. E aquela mistura de português e chinês dei-lhes um traço característico.

Sempre que vinha a Lisboa, eu o Tonito tínhamos companhia para o fim-de-semana. Ele com a mais velha e eu com a do meio. Íamos à praia a Carcavelos e ao Estoril, percorríamos os cafés da Reboleira e Amadora, íamos dançar e beber uns copos para uma boite que abria as portas aos domingos à tarde para a malta mais nova e que ficava na Rua Filipa de Vilhena. O Tonito chegou a namorar com a mais velha. Acabou por casar com uma rapariga lá da terra. Eu tentei alguma aproximação à irmã do meio. Foi o meu segundo amor platónico. Ainda hei-de falar do primeiro. Mas sempre que lhe puxava pela conversa ela dizia que tinha um namorado que era piloto da Força Aérea. Nunca o vi. O certo é que passávamos muitos fins-de-semana juntos. Mas fiquei-me apenas pelo amor platónico pela minha chinesinha Nônô…

Quando fui para Moçambique levei o seu contacto. Ainda escrevemos algumas cartas. Nunca existiu empatia e acabou.

Quando regressei da guerra e fui estudar para o ISE estava ela a acabar o curso. Apenas nos cumprimentávamos. Depois encontrava-a regularmente na Rua da Prata. Ela vinha de comboio da Amadora e apanhava o eléctrico para o Arco do Cego. Trabalhava na Casa da Moeda.

Como eu e alguns dos meus irmãos já estávamos em Lisboa foi por sugestão do Tonito que começamos a procurar casa para alugar para todos. Um dia fui com ele a Queluz ver uma casa disponível. Levei lá a Lena e ficamos com ela. Tinha 5 assoalhadas. 2 quartos para os rapazes e 2 para as raparigas.

Atrás de nós vieram os outros todos. Até que ficaram apenas os pais em Cardigos. Eu estava na tropa. E eles lá foram arranjando emprego, a maioria deles no Ministério da Educação. O certo é que a vinda para Lisboa abriu os olhos a eles todos. A maioria acabou por estudar à noite, acabaram por tirar cursos superiores e arranjar empregos melhores.

O Mário também deu as suas voltas na vida. Foi tirar a escola primária a Canha, perto de Setúbal, a casa de familiares da parte da minha mãe. Quando vinha a casa nas férias do Natal trazia de lá laranjas. Eram as maiores laranjas que já vira. Enormes. Tão grandes eram que a minha mãe descascava-as e dava a cada um apenas um ou 2 gomos. Mesmo assim havia guerra pelas cascas. Para comer a parte interior da casca. Estas laranjas serviam para fazer óculos: eu cortava 2 lascas da casca em lados opostos. Depois cortava uma tira da casca entre as duas lascas sem a separar. Por fim tinha que meter a faca por dentro da casca e separar toda a casca do miolo. Enfiava a tira debaixo do chapéu e afastava os dois buracos para os lados, ficando um em cada olho. Era assim que eu brincava.

Depois o Mário esteve no seminário de Poiares. Tentou e não se deu bem. Acabou por ir tirar o liceu a Castelo Branco. Usava a barba grande e os cabelos enormes. Cada vez que vinha ao Casalinho havia sempre discussão com o pai. Quase chegavam por vezes a vias de facto. Ele não queria aquelas guedelhas. Ele veio depois para Lisboa tirar Medicina. Teve ligações esquerdistas. Constou-me, depois de eu vir de Moçambique, que uns dias antes do 25 de Abril alguém ligado à PIDE batera à porta da casa de Queluz a perguntar por ele.

Depois do 25 de Abril as suas ligações esquerdistas levaram-no a participar em actividades de apoio local em locais mais desprotegidos. Num bairro de barracas da Amadora participou na construção de um espaço para apoio social e escolar.

A casa de Queluz serviu para todos nós. Até para receber o pai depois de adoecer e a Mãe quando ficou viúva. Foi lá que faleceu o pai e mais tarde a mãe.

Foi para lá que fui morar quando vim de Moçambique. Foi de lá que saí para ir casar. Lá faleceu o João, vítima de um ataque epiléptico nocturno. De lá saíram os meus irmãos todos menos o Abílio e o Alberto. Quando o senhorio vendeu o andar, o Abílio comprou a parte dele e a parte do Alberto. O Alberto foi depois comprar uma para ele para os lados de Sintra.

A dada altura a minha mãe chamou os filhos todos. O Manel já tinha falecido. Veio a viúva. Havia feito lotes dos terrenos todos como ela entendeu. Escreveu os nomes em papelinhos e enrolou-os. A começar pelos mais velhos cada um tirou um papel. Para mim ficou o Covão do Rocinho e parte do Cabril, entre o estradão e o lado direito da barragem. A casa ficava para todos. Assim evitou a guerra de partilhas e faleceu em paz.

Barragem preta.jpg

 A barragem do Casalinho com água preta, fruto dos incêndios de 2003. A maior parte dela construida em terrenos dos meus pais.

Os terrenos de lá ficaram para um dos meus irmãos. Uma tira que restou do lado de cá ficou para mim.

Covão do rossinho ardido.jpg

O Covão do Rocinho: a horta e os terrenos que me calharam, ardidos em 2003.

À esquerda a Fernanda, a mãe dela (D Palmira) e os meus filhos Bruno e Tiago.

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publicado às 12:11

A santa roubada e que partiu um braço

por António Tavares, em 25.04.17

A santa roubada e que partiu um braço

Cardigos é uma vila muito antiga. Anterior à nacionalidade. Foi terra de templários. Teve foral de D. Manuel. Foi sede de comarca no tempo dos Filipes.

Nos anos de 1950 tinha no largo principal um chafariz, o pelourinho, um poço, mas já não tinha o velho eucalipto. Foi cortado e queimado na praça na fogueira de Natal. Porque com ele ali não havia espaço para se fazer a queima do madeiro. Passou a fazer-se todos os anos a fogueira de Natal que tinha que arder até ao ano novo.

O fontenário era a único ponto público de abastecimento de água, até esta ser canalizada para as casas, após construção da barragem do vergancinho. Parte dos terrenos onde foi construída esta barragem era dos meus pais. Com as partilhas coube-me a mim a faixa de terreno entre o estradão que sobre do lado direito e o lençol de água.

O pelourinho ainda lá está. O Fontanário também, mas perdeu uma das torneiras e a cercadura de mármore em volta.

Cardigos tinha uma velha igreja no lugar onde hoje está a actual. Essa velha igreja ardeu em tempos muito antigos. Ainda me lembro, nos anos 50, das suas ruinas queimadas, envoltas em silvas e heras. Nós subíamos por cima das paredes, para ver os restos queimados do altar. No início do século XX o povo juntou-se para angariar dinheiro para construir uma nova.

Foi escolhido o melhor local, foi feito um projecto em planta cruciforme e foi iniciada a construção. Esta igreja era o “ai Jesus” do povo, porque foi feita pelo povo. As pessoas vinham à missa (não sei onde era ministrada) ao domingo e cada um trazia o que podia oferecer para a construção: uma telha, um tijolo, 2 tábuas, etc. E foi o povo com as suas mãos que a construiu. Dimensões grandiosas. Nunca chegou a ser bem acabada. A torre era enorme, mas internamente não estava sequer rebocada. Devia ter levado 4 sinos, mas apenas se conseguiu dinheiro para um. Bem grande e valioso.

O Manel chegou a ser sacristão. Mais tarde coube-me a mim, nas férias de verão, abrir a igreja muito cedo e tocar o sino ao nascer do sol.

Mas como a construção era de cariz popular e não sofreu obras de manutenção, no início dos anos 70 já tinha acentuados sinais de degradação. O pároco na altura meteu mãos à obra para a construção da actual, estilo moderno, no lugar da que antigamente tinha ardido. O povo não quis. Queria obras na SUA igreja.

O padre levou a dele avante e começaram as obras. Gerou-se um movimento popular que na altura chegou a ter alguma expressão. Vendeu o sino de bronze para custear as obras e quando vieram para o buscar a população fechou o padre na igreja para o linchar. Foi salvo pela GNR. Mesmo assim, numa noite, alguém subiu à torre e empurrou o sino para a rua. Partiu-se todo. Mas como o que importava era o valor do bronze. Foi levado. Nunca mais se ouviu o sino grande de Cardigos. Passou a ouvir-se a “sineta” da moderna igreja, comandada electronicamente.

A indignação atingiu tais proporções que chegaram a ir de comboio de Lisboa muitos naturais de Cardigos para ajudarem nas revoltas locais. Parece que o padre comandou mesmo uma contra-revolta que fazia esperas ao comboio e atiravam com pedras. Foram mesmo publicados panfletos em verso para tentar desmascarar o padre.

Das pedradas ao comboio

Lá perto do Entroncamento…

São os 2 únicos versos de que me lembro. Porque entretanto fui para a tropa e para Moçambique, soube que em 1972 a nova igreja foi mesmo inaugurada com pompa e circunstância pelas autoridades civis e militares…

A velha levou entretanto algumas obras, é gerida pela Casa de Misericórdia como centro de dia e centro social. Mas ninguém lhe tira o seu orgulho. Que as gerações vindouras lhe saibam manter a dignidade altaneira!

Na minha quarta classe (1960) lembro-me de o povo de Cardigos se juntar um dia no largo principal para receber com flores e foguetes um herói que acabara de cumprir 2 anos de prisão em Mação e que chegava na carreira das 2 horas. A professora fechou a escola e fomos todos para a praça esperá-lo.

É que existia naquele tempo uma humilde capela nos limites das freguesias de Amêndoa e de Cardigos, mesmo junto da estrada nacional. Cada freguesia reclamava a capela como sua. E o povo da Amêndoa, para que a capela passasse a ser de vez sua pertença, destruiu-a e reconstruiu-a uma dezena de metros mais adiante.

O povo de Cardigos não se ficou. Arranjou um herói que se dispusesse a ir roubar a santa e coloca-la no lugar da antiga ermida. O objectivo era que de manhã o povo a visse e acreditasse que fora um milagre. Que a santa queria a capela no antigo lugar.

Acontece que o pobre homem para ter essa coragem teve que beber uns copitos. E como já ia meio toldado deixou as pegadas em cima do altar e deixou cair a santa. Partiu-lhe um braço. Aí, pensou ele: ninguém vai acreditar num milagre em que a santa parte um braço pelo caminho. Solução: entrou pelo mato dentro, acabou de escavacar a santa e enterrou-a no meio das estevas.

Veio a GNR, ele foi descoberto e apanhou 2 anos de choça. E a capela já está em terrenos da Amêndoa. Os de Cardigos colocaram então apenas um cruzeiro de ferro (que ainda lá está) no lugar da antiga ermida.

Esta rivalidade entre as duas freguesias sempre existiu. Nas festas de Cardigos quando se ouvia dizer “olha aquele é da Amêndoa” chovia bordoada que fervia. Nunca entravam nos bailaricos.

A festa principal de Cardigos é dia de N. Srª da Assunção: 15 de Agosto. Nesse dia instalava-se um motor gerador fora da vila, instalava-se luz eléctrica nas principais ruas, havia coreto, música, fanfarra, as ruas atapetadas com murta, havia procissão e uma coisa que nunca mais vi: fogo preso. No final da festa havia foguetes e lançamento do balão com uma lanterna acesa lá dentro.

Nesse dia de festa tínhamos por hábito comprar a maior melancia que houvesse no mercado e um garrafão de vinho, ia-mos comê-la para debaixo das oliveiras e dormir a sesta na hora de maior calor.

O balão subia, subia até quase desaparecer no céu. E muitas vezes ao cair gerava incêndios. O lançamento destes balões acabou por ser proibido. E lá pela uma hora da manhã o meu pai pedia a um dos motoristas da serração para nos levar ao Casalinho, na caixa de carga da camioneta.

Mas o que mais me lembro é do fogo preso: figuras animadas que se mexiam com o arder dos rastilhos de pólvora. O rastilho ia ardendo e passava o movimento de uma figura para outra: ciclistas, rodas, palhaços, etc.

Mostro a seguir algumas imagens que retirei do site da Junta de Freguesia de Cardigos. Espero que não levam a mal.

Cardigos 1.jpg

O poço no centro da praça e o velho eucalipto.

Na rua à esquerda, lá muito ao fundo a igreja (com a sua torre) que o povo construiu.

pelourinho de Cardigos.jpg

O pelourinho. Aqui ainda visíveis os ferros para pendurar os criminosos.

Igeja de Cardigos.jpg

A velha igreja que o povo construiu. Era deste lado que estava o sino grande

Igeja de Cardigos 1.jpg

A nova igreja do padre, no lugar da primitiva que ardeu

Postal de Cardigos 1.jpg

Postal de Cardigos.jpg

Postais de Cardigos (anos 70) que a minha mãe me mandou

O velho chafariz com a cercadura de mármore já perdida.

 

 

 

 

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publicado às 18:20

É para isto que servem os amigos

por António Tavares, em 24.04.17

É para isto que servem os amigos

No seminário estudava-se apenas a área de Histórico-filosóficas. Latim, grego, filosofia, etc. Logo que cheguei a Lisboa tentei arranjar uma escola onde seguisse esse rumo. Pela sua localização a escola Luís de Camões na Almirante Reis era a única que me servia: tinha aulas à noite e ficava perto do trabalho e da pensão. Para além de não terem essas disciplinas disseram-me logo: para que é que queres estudar isso?

Nunca tinha pensado nisso. Queria apenas estudar. Fui depois investigar qual a escola superior que tinha aulas nocturnas. Só me indicaram o ISE (hoje ISEG). Voltei à escola e escolhi uma área que me levasse ao ISE.

Inscrevi-me numa turma que ia ministrar no mesmo ano o 6º e o 7º ano ao mesmo tempo. Fui fazer exames finais em Julho ao Liceu D Pedro V. Passei a todas as disciplinas e só fiz oral de Inglês e Matemática.

No inglês joguei na sorte: estudei apenas uma lição, de trás para a frente e da frente para trás. Os verbos todos dessa lição, etc. O júri disse-me: abre o livro e onde calhar lê a lição. Estava marcada. Abri mesmo naquela lição. Sabia a lição de cor. Fizeram-me 2 perguntas e passei com 10. Matemática é que chumbei na oral.

Comecei a ver a vida a andar para trás. Podia pedir adiamento da incorporação no exército enquanto estivesse a estudar num curso superior, mas para isso tinha que entrar no curso nesse ano: 1970. Logo, precisava de aprovação na prova de admissão ao ISE. Já só tinha a oportunidade de Outubro. Foi nesse verão que passei todo o tempo a fazer todos os exercícios do Palma Fernandes. Mesmo no café ou nas esplanadas, enquanto os colegas ouviam o relato do futebol, eu fazia exercícios. Em Setembro passei na matemática do 7º ano e fiz fazer exame de aptidão ao ISE. Chumbei.

Como o que não tem remédio, remediado está, a minha decisão foi pedir antecipação da incorporação. Já que tinha que ir para a tropa que fosse já. Quanto mais depressa fosse mais depressa vinha. Mas com o 7º ano ia para o curso de sargentos e se estivesse a frequentar um curso superior ia para o curso de oficiais, para Mafra.

Espera, lembrei-me: Há-de haver um curso superior que não exija exame de aptidão. E havia: era o ISLA. Lá fui eu à Rua do Sacramento à Lapa inscrever-me, já nem sei em que curso. Num qualquer. Inscrevi-me e paguei. Disse na secretaria:

- Agora preciso que me passe um atestado em como já estou inscrito, para fins militares.

- Há, mas nesse caso, tem que pagar o ano todo.

- O ano todo? Mas porquê?

- Porque vai acontecer consigo o que acontece com quase todos os que cá se vêm inscrever. Só vêm pelo atestado e depois não poem cá mais os pés.

- E quanto custa?

- 8 contos.

Por esta é que eu não esperava. 8 contos! E agora? Ainda escrevi à minha mãe a pedir ajuda. Não consegui nada. Felizmente há sempre pessoas boas. E normalmente sempre as encontrei fora do circuito famíliar. Havia no escritório do despachante um rapaz chamado Manuel Lopes. Era o tesoureiro do Grupo Desportivo. Contei-lhe em jeito de desabafo. Disse-me ele: eu ajudo-te.

Emprestou-me os 8 contos das contas do Grupo Desportivo. Combinamos na altura os reembolsos mensais. Não falhei um. E no dia de embarcar para a tropa tinha tudo pago.

Era um amigo do coração. Anos mais tarde (1983?) estava eu a trabalhar nos TLP já o Manel Lopes trabalhava como Despachante Oficial. Tinha comprado um andar para escritório numa transversal à Afonso III. Era uma rua nova. Não havia telefones. Em todo o prédio só havia o telefone das obras de construção instalado num espaço na garagem. E os TLP Não tinham projecto previsto para a zona. Era preciso abrir uma conduta nova por baixo da Afonso III, um ramal até ao prédio, instalações novas, etc. Coisa para vários anos.

O Manel pediu o telefone emprestado ao construtor e instalou uma secretária na cave onde ficou a sua empregada. Sempre ligavam para ele, ela chamava o patrão através de walkie-talkie.

Nada que um bom amigo não resolva. Eu tinha nos TLP outro amigo o Engº Santos Cruz. Contei-lhe e com a sua influência, num mês fez-se o projecto, abriu-se a conduta e o ramal e o Manel Lopes instalou no seu escritório 3 telefones e um fax.

Recompensa: umas santolas num jantar a 3 na cervejaria Solmar. E 2 caixas com 12 garrafas de vinho verde tinto de produção caseira que ele trouxe da terra dele, lá no Minho. Nunca tinha bebido. Mas souberam-me a pouco.

Com o documento de frequência do ISLA na mão lá fui ao departamento de recrutamento do exército pedir para seguir na primeira incorporação. Estávamos em Outubro ou Novembro de 1970. Já não dava para ir na primeira, em Janeiro. Fui na segunda em Abril. Havia 4 recrutas por ano.

Na véspera do dia aprazado para me apresentar em Mafra levei os meus amigos todos a beber umas imperiais na cervejaria Ribadouro. No dia seguinte apanhei o último comboio da tarde no Rossio. Destino Mafra. Comecei a ver vários rapazes da minha idade com malas. Pensei: vamos se colegas. E foram. Chegados à estação de Mafra saímos. Eramos uns 4 ou 5. Na estação: ninguém. Não havia telefones. Transportes também não. A estação (apeadeiro) ficava num deserto numa encosta, longe de tudo. Andámos um pouco a pé e inquirimos a um aldeão como se ia para Mafra. Respondeu:

- Apé. A esta hora já não há transportes. E são uns 8 ou 9 quilómetros.

Acabamos por encontrar um senhor de mota a quem pedimos fosse chamar 2 táxis para nos levar a Mafra.

Assim começou a minha aventura na guerra…

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publicado às 11:24

Aprendi muito com o pai

por António Tavares, em 22.04.17

Aprendi muito com o meu pai

Os cereais que mais semeávamos eram o milho, o trigo e o centeio. Durante o inverno comia-se broa e pão de trigo no verão. Não tínhamos forno. Usávamos o forno do Ti Vergílio. Só se cozia pão uma vez por semana.

Mas para moer os cereais o meu pai tinha que ir na carroça levar os sacos de grão ao moleiro que operava um moinho de vento no alto de um monte, para lá dos Vales, já próximo do Vergão em terras de Proença-a-Nova. Uns bons 10 quilómetros. Ia levar o grão e voltava dias mais tarde para buscar a farinha no dia combinado. Deixava a maquia para pagamento: 1 em 10.

Nos meus 5 ou 6 anos passei a ir com ele, para deixar a mãe e os mais novos em paz. Ao princípio o moinho era de vento. Nas últimas vezes que lá fui já era movido a motor a gasóleo.

Por não ser prático o meu pai convenceu o meu padrinho (Ti Virgílio) a ceder um terreno junto ao ribeiro do vergancinho para construir um moinho para uso comum. Ele acedeu e colaborou na sua construção. Quem o construi foi o meu pai. Eu ia para lá porque gostava de observar a evolução das obras e porque a minha mãe não me podia aturar. Assisti à construção da represa no ribeiro, da levada da água, do arco do rodízio, em pedra, do próprio rodízio talhado em madeira de pinheiro, da tremonha, etc. Fazia perguntas constantes ao meu pai. Tinha que perceber como tudo funcionava. Tinha 5 ou 6 anos e andava por cima dos muros, de um lado para outro. Catrapumba… cai lá em baixo e parti a cabeça, mais uma vez.

As mós eram de granito que não havia na zona. O meu pai foi busca-las na carroça lá muito para o norte. Nem sei onde.

Sempre que começava a chover, fosse de dia ou de noite, lá íamos a correr pôr o moinho a andar e a moer. Porque só podia moer quando no ribeiro corria água.

Ainda hoje são visíveis as ruinas do moinho no final do lençol de água da barragem do vergancinho. Subindo pelo estradão do lado direito da barragem, vêem-se na margem oposta.

Pela mesma altura o meu pai construiu a nova casa do Ti Virgílio. Um prédio! Água encanada dum poço no monte para lá do vale. Casa de banho com torneiras e banheira. Nunca tinha visto nada assim.

O meu pai escavou os alicerces na encosta, até apanhar solo firme. Isso eu percebi. Não percebi é porque é que a base do alicerce era em escada, sendo que os degraus eram mais baixos para o lado onde a encosta subia. E perguntei-lhe. Sempre me explicou tudo:

- Não vez que assim a parede fica a fazer pressão para cima e não desliza pela encosta.

Eu achava o meu pai muito esperto e inteligente. O que aprendi com ele nas obras foi-me muito útil mais tarde aquando da construção da Casa da Praia.

Quando casou, veio para Lisboa trabalhar nas obras. Dizia-me ele que foi colega de pessoas que depois se tornaram afamados construtores como o J Pimenta. Contava-me que a empresa dele alcatroou as ruas do Bairro da Encarnação e construiu as escadas do Bairro da Boavista em Campolide.

Era na altura da II Grande Guerra. Que se lembra de em Lisboa se fazerem simulações de ataques aéreos. Apagavam-se as luzes da cidade e surgiam no ar apenas as sirenes e as luzes dos holofotes pesquisando no ar aviões inimigos.

Mas cada vez que ia a Cardigos aparecia mais um filho. Até que por causa da guerra e da crise, desistiu de Lisboa e foi construir para Cardigos.

Era aos domingos, depois da missa das 11 que se faziam os negócios, durante o circuito das tabernas. Quem precisava de trabalho juntava-se com quem oferecia trabalho. Faziam-se os pagamentos da semana anterior e combinavam-se os trabalhos para a semana (ou semanas) seguintes. Quem recebia pagava uma rodada. Primeiro só vinho. Para o fim do dia já era cortado: meio vinho meia gasosa. Eu queria sempre acompanhar o meu. Só bebia gasosa.

Foi aqui que aprendi a olhar para o chão quando andava na rua. O meu pai ensinou-me a abrir todas as caixas de fósforos que visse no chão. Explicação: os pobres aldeões guardavam os trocos dentro das caixas de fósforos. Assim sempre aparecia, de vez em quando, alguns cruzados ou tostões.

Estava eu no seminário quando o Manel seguiu os passos do meu pai na construção. Havia em Cardigos vários empresários que tinham empresas de construção com alguma dimensão, a operar principalmente em Lisboa. O Manel foi com um deles. Foi trabalhar para alcatroar uma das estradas da Serra da Arrábida. Conduzia um dumper a transportar alcatrão. Ficou mal travado. O dumper deslizou e ele foi apertado contra outra viatura. Foi internado. Teve que ser operado e foi-lhe extraído o baço. Não morreu disso. Morreu dos excessos… penso eu.

Bodas de ouro.jpg

 Bodasde ouro... no Casalinho

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publicado às 14:50

Exploração e roubo

por António Tavares, em 17.04.17

Exploração e roubo

A minha chegada a Nampula coincidiu ainda com algum rescaldo da célebre operação Nó Górdio. Todo o planalto dos Macondes em Cabo Delgado fora varrido a napalm, um explosivo que já havia sido banido pelas convenções internacionais. Contava-se entre nós que no briefing final os generais apenas lamentavam o material perdido. Porque os homens… a gente pede e eles mandam mais…

Existia em Nampula o BMM Batalhão de Manutenção de Material. Alguns hectares de ferro velho, camiões e unimogues estampados e minados. Todas as viaturas acidentadas, em guerra ou não vinham aqui parar. Mesmo as civis abrangidas pelo seguro de estar ao serviço do exército. Estavam para reparar se tal fosse possível, ou para tirar peças para outras.

Trabalhavam aqui muitos militares, a maioria mecânicos. E também muitos civis, incluindo negros. Estes eram admitidos a ganhar 4 contos de réis. Mas o capitão que tratava dos contratos quando os recebia dizia-lhes:

- Tu vens para ganhar 4 contos. Mas de início, como ainda não tens experiência, recebes só 2 contos. Depois, com o tempo, se fores aprendendo bem e te comportares bem, ganhas experiência a passas a receber mais.

E os coitados dos negros assinavam ou punham o dedo em recibos de 4 contos e só levavam 2.

Lá dizia o Cancioneiro do Niassa:

E o senhor Brigadeiro

Vive muito consolado

Até comprou uma balança

Para pesar o dinheiro

Que rouba ao pobre soldado

Quando será Deus do Céu

Que um dia haverá verba

Para a gente comer pão

E os chicos erva erva

Para a gente comer pão

E os chicos merda merda

(reprodução de memória)

Todos os oficiais superiores residiam com as famílias em moradias que ficavam mesmo ao lado da messe, em frente ao quartel-general. Assumiam a moradia como sendo sua. Sempre que um deles se vinha embora embrulhava loiças, candeeiros e até carpetes e cortinados. Quando alguém encarregue de conferir, à posteriori, o material à carga fazia o relatório das faltas. E vinha o despacho superior:

- Abata-se por estar incapaz.

- Ao sr alferes Tavares para proceder à destruição.

E lá fazia eu um auto: no dia tal às tantas horas, na minha presença foram destruídos estes e estes bens por se encontrarem na situação de incapazes para o serviço.

O quartel-general havia sido transferido de Lourenço Marques para Nampula pouco depois do início da guerra, alguns anos antes de eu chegar a Nampula. No porto de Nacala um tal caixote caiu ao mar e nunca foi resgatado. O material nele contido foi dado com o perdido.

Passados aqueles anos todos, sempre que se dava por falta de algum artefacto de que se desconhecia o destino, alguém dizia: vinha no caixote que caiu ao mar. E alguém escrevia: proceda-se ao abate…

O conjunto João Paulo foi convidado para fazer uma tournée pelos aquartelamentos militares de Moçambique. A sua exigência (além do pagamento): ter disponíveis à chegada os instrumentos musicais cuja lista entregaram. Incluía bateria, guitarras eléctricas, teclados, etc. Acabaram a tournée e vieram embora. Quando alguém se apercebeu: cadê os instrumentos? Tinham sido encaixotados e embarcados para Lisboa.

Despacho: proceda-se ao abate por incapacidade…

Mesmo nos meios civis havia verdadeira exploração da condição humana. Alguns machambeiros, mesmo familiares, empregavam negros nas suas explorações a quem pagavam um ordenado mas em géneros. Podiam levantar na loja da cidade o arroz, o óleo, os panos e tudo aquilo que precisassem. Eles não tinham condições de verificar se o que levavam era o que era registado e ao valor correto. Ao dia 10 ou 15 já ouviam: acabou, o teu ordenado acabou.

Era assim a loja na cidade de um patrício que fornecia o exército com víveres e frescos. Tinha no pátio em frente um Simca 1100 a cair de podre. Os pneus já estavam todos sem ar. Tinha comprado um mercedes e nunca mais pegara no Simca. Eu tinha tirado a carta de condução e tive a ousadia de lho pedir emprestado para dar umas voltas. Nunca. Sempre recusou.

No quintal das traseiras da loja amontoavam-se cachos de bananas algumas já podres. No quarteirão de baixo ficava o hospital civil onde o Abílio havia sido internado após um acidente de mota. Ele nunca o foi visitar. Eu pedi-lhe umas bananas para levar ao Abílio:

- Leva destas que são mais baratas porque já estão um pouco maduras. São xx escudos!

Em 1973 foi construído o edifício do cinema militar. Mesmo ao lado do ringue onde jogávamos futebol de cinco às quintas-feiras. A plateia era para os soldados: pagavam 12$50. O balcão era para os Sargentos: pagavam 5$00. O balcão superior era para os oficiais: tinham entrada privativa e não pagavam nada.

Também tive algumas dificuldades com alguns negros que trabalhavam na oficina. Na altura dos cajueiros ninguém os fazia vir trabalhar. Apanhavam os cajus, esmagavam as frutas para uma bacia e uns dias depois aquilo fermentava. Era a sua cerveja. Bebiam e passavam os dias deitados bêbados debaixo dos enormes cajueiros. E havia por lá muitos.

Hospital de Nampula.jpg

Hospital civil de Nmapula ao fundo. à esquerda os prédios onde o nosso patrício tinha a loja.

Rua de Nampula.jpg

 Recanto típico da arquitetura colonial de Nampula. À esquerda um cajueiro. Ao centro papaias.

Cinama militar.jpg

 Cinema militar de Nampula

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